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Para além do homem

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O filósofo Michel Foucault

VLADIMIR SAFATLE

Vivemos em um tempo de redefinição. Há fortes sinais de que nos falta, no entanto, algo para que acontecimentos com forte poder de ruptura ocorram. Na verdade, nos falta aprender a pensar de outra forma. Pois acontecimentos verdadeiros estão sempre associados à força de se reorientar no pensamento. Neste sentido, poderíamos dizer que nosso tempo precisa saber recuperar experiências que insistiram na necessidade de “aprender a pensar de outra forma”, criticando aquilo que, em nossas formas de vida, parecia completamente naturalizado.

Um exemplo ilustrativo deste ponto encontra-se na experiência intelectual de Michel Foucault. Um dos eixos de tal experiência parte da reflexão sobre os pressupostos implícitos na pergunta kantiana “Was ist der Mensch?” [O que é o homem?]. Responder tal pergunta, nos lembra Foucault, implica assumir regimes de saberes que impõem modos disciplinares de relação a si. Saber o que o homem é não é uma mera questão de descrição de atributos previamente determinados e essencialmente assentados em uma natureza. Saber o que o homem é implica produzir uma antropologia de forte teor normativo disciplinar. Esta antropologia está pressuposta, por mais que filósofos não queiram, no fundo de toda consideração sobre o que teria validade incondicional, categórica e universal no interior do pensamento. Em outras palavras, há sempre uma antropologia a limitar as possibilidades do questionamento transcendental. Pensar de outra forma aparece então como necessidade de denunciar a antropologia que serve de fundamento mudo para o questionamento transcendental.

Nesse sentido, quando Foucault insiste na necessidade de acordar daquilo que ele chama de “sono antropológico”, devemos entender isso como signo da procura de um modo de relação a si que não se submeta ao modelo “jurídico” de relação a si que parece derivar-se de todas as formas de questionamento transcendental. Tal modelo jurídico está presente nas temáticas da Lei moral, do tribunal da razão, no regime de universalidade categórica, na temática das condições normativas de possibilidade etc.

Para além desta relação jurídica a si, Foucault procura uma forma de cuidado de si que viria diretamente das práticas de cuidado presente nos gregos e romanos. Tais práticas seriam caracterizadas por formas singulares de ajustes entre exigências sociais e “disposições” particulares que constituem, para um sujeito, algo como uma dimensão de verdade. No entanto, os termos desse ajuste são fluidos. Foucault fala, na maioria das vezes, de “intensificação da relação a si” [“intensificação”, já que se trata de uma questão de capacidade de escapar tanto do excesso quanto da passividade], de “atenção ao corpo” ou, ainda, de “soberania” do indivíduo sobre si mesmo.

Note-se, no entanto, que essa constituição soberana de si passa por um deslocamento de si mesmo, da autonomia individual à reconciliação com o corpo. Esta é uma ideia interessante, já que se trata de dizer que não se trata simplesmente de abandonar toda e qualquer reflexão sobre o espaço das individualidades, mas de criticar uma certa figura do indivíduo – assentada no paradigma jurídico do proprietário de si – que nos parece, atualmente, completamente natural.

Assim, quando Foucault tentar definir tal regime renovado de soberania, ele não terá outra possibilidade que defini-la como: “Conjunto de práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não simplesmente definem para si regras de conduta, mas procuram se transformar, se modificar em seu ser singular e fazer de suas vidas uma obra que porta certos valores estéticos e respondem a certos critérios de estilo”.

Notem, no entanto, que ao aproximar soberania e trabalho estético, Foucault precisa redefinir o que ele entende aqui por “prática refletida e voluntária”. Pois devemos nos lembrar desta ideia de Adorno, para quem o uso estético da língua só é possível quando não procuramos mais dominar a língua, mas nos deixamos dominar por ela. Ou seja, essa soberania pressupõe uma negociação com “disposições” que não nos aparecem como algo “voluntário”. Tais disposições são as marcas das contingências em nós. Contingências que não se submetem à figura normatizada do homem.

vladimirsafatle@revistacult.com.br


O músico revolucionário

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O compositor John Cage

VLADIMIR SAFATLE

No dia 5 de setembro, John Cage fez cem anos. Provavelmente, esta data passará em silêncio. Um dos maiores compositores do século 20 continua sendo um estranho para a sensibilidade contemporânea. Alguém cujas questões permanecem sob a forma de desafios abertos.

Não é complicado entender a razão deste estranhamento. Dificilmente encontraremos alguém que foi tão longe da negação sistemática dos parâmetros que normalmente definem a racionalidade da forma musical quanto John Cage. O que explica por que sua obra continua sendo, em larga medida, desconhecida e de difícil abordagem.

No entanto, aqueles que quiserem entrar a partir de uma porta que se abre mais facilmente podem começar com a audição do CD Music for Non Prepared Piano, gravado pelo grande pianista Jay Gottlieb. Neste CD, que apresenta vários momentos da produção de Cage a partir de suas peças para piano, é possível encontrar algumas das obras mais líricas e contemplativas do compositor, como “In a Landscape” e “Dream”, assim como obras que expõem claramente a inventividade de sua música, como “Ophelia” e o belo ciclo “Metamorphosis”.

Mas, se voltarmos à negação cageana dos parâmetros tradicionais da racionalidade musical e da própria noção de forma, veremos como ela respondeu a um impulso fundamental para a crítica modernista. Se Schoenberg representa a crítica a uma linguagem estética arruinada feita através da possibilidade de apresentar novos processos construtivos (no caso, o dodecafonismo), Cage será aquele que irá desenvolver uma crítica totalizante da razão musical através de um certo retorno à origem, ao arcaico. Como se a música tivesse a força de liberar uma origem há muito recalcada pelos processos de racionalização. Uma origem que atende por seu nome clássico, a saber, a natureza. Não por outra razão, Cage escreverá, de maneira explícita: “Arte = imitação da natureza em seus modos de operação”.

A princípio, não deixa de ser irônico que um dos mais radicais músicos de vanguarda pareça endossar a proposição tradicional da arte como mimesis da natureza. Contra a pretensa autonomia do fato musical, Cage estaria insistindo na necessidade da música conformar-se ao que é extramusical e assegurado no solo estático da natureza.

No entanto, tudo muda se nos perguntarmos: qual é esta natureza que parece garantir a Cage a realização do programa modernista de ruptura e renovação?

Esta é uma pergunta fundamental, já que Cage sabe que a imagem da natureza socialmente construída em nada se assemelha a esta natureza cujos modos de operação a arte deve ser capaz de imitar. Na verdade, tal natureza só aparece quando somos capazes de destruir todos os padrões de ordenamento e estabilidade que tendem a se passar por naturais. Nunca a crítica à reificação da linguagem musical foi tão longe.

Na verdade, a natureza em Cage será o espaço da contingência radical, do acaso sem télos, dos fenômenos que não se submetem à direção de uma intenção ou à valoração de um interesse. Uma natureza que desconhece regularidades, que não funciona mais como a imagem de um sistema de causalidade fechada.

Só aceitando uma natureza tal como esta seria possível, ao menos aos olhos de Cage, “fazer algo que escape à dominação do Eu”. Uma natureza que só se manifestaria quando a música se transformasse no espaço de acontecimentos que não poderiam ser previstos nem pelo compositor, nem pelo interprete e nem pelo ouvinte.

Neste sentido, é digno de nota que um dos setores mais avançados do modernismo musical precise reconstruir profundamente o conceito de natureza para abrir o espaço a uma linguagem que não teme flertar com a indiferença, com a indeterminação e com a inexpressão para voltar a ter inventividade. Prova maior de que, quando a linguagem parece mortificada, nossos melhores artistas não temem sequer em flertar com sua própria autodissolução simbólica.

Vladimir Safatle rebate crítica de Ruy Fausto

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A seguir, o filósofo, professor livre docente da USP e colunista da CULT Vladimir Safatle responde crítica do professor emérito da USP Ruy Fausto sobre seu livro A Esquerda que não teme dizer seu nome ( Três Estrelas, 2012), recentemente publicada na revista eletrônica “Fevereiro” (leia aqui: http://revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=13).
Um mal-entendido

Este é um texto que gostaria de não ter escrito.  Textos nos quais o autor tenta se defender de críticas que lhe são endereçadas só se justificam se tais críticas vierem de alguém que, a princípio, pode ser convencido através de novo encadeamento de argumentos. Alguém que, mesmo discordando de certas posições do autor, está disposto a rever argumentos ou, ao menos, melhorar o foco de suas críticas. É triste dizer isto, mas não creio que este seja o caso de Ruy Fausto e de sua resenha sobre meu livro A esquerda que não teme dizer seu nome.

Escrevo este texto não visando abrir alguma forma de debate. Escrevo-o para afirmar a impossibilidade de haver um verdadeiro debate entre nós ou talvez para constatar que, no fundo, nunca houve entre nós algo parecido a um debate. Só uma sucessão de mal-entendidos. É triste, mas há de se conviver com isto na vida intelectual e passar a outra coisa.

Depois de fazer sua resenha de meu livro, Fausto deplora que algo como uma “incipiente filosofia crítica instalada em terras sul-americanas” tenha sido perdida por pessoas como eu. Pessoas, a seu ver, que estariam afogadas no “ambiente hiper-competitivo que reina em certas universidades” e que teriam liquidado nossas possibilidades críticas.  De minha parte, não creio ser o caso de “defender-se” de colocações desta natureza. Apenas creio que isto é o sintoma da impossibilidade de Fausto realmente ouvir questões e elaborações intelectuais que não são as suas.

Marcado por uma passagem pela extrema-esquerda trotskista, Fausto percebeu o equivoco de perspectivas políticas que faziam uma negação abstrata demasiado simplória da democracia parlamentar. Ele faz parte de uma geração que se volta para o passado e se pergunta como pôde acreditar em ideias como “centralismo democrático” e “ditadura do proletariado”. No entanto, setores de tal geração tendem a ser insensíveis a outra coordenada histórica, a saber, a dos que nunca tiveram passagens por extremismos desta natureza, que cresceram em outro momento, mas que percebem claramente os limites de atuação e transformação no interior das estruturas político-partidárias da democracia parlamentar.

Sendo assim, da experiência de auto-crítica dos engajamentos de juventude restou para Fausto uma perspectiva esquemática que consiste em dizer que todos os que vêem a democracia parlamentar atual como regime submetido a processos de degradação normativa abrem necessariamente as portas para figuras do totalitarismo.  Tanto é assim que ele pode dizer sobre meu livro, sem o menor constrangimento: “De uma forma ou de outra, o livro contém uma pregação anti-democrática (contra a democracia parlamentar, dirá Safatle, mas, em tempos modernos e contemporâneos, não há como separar uma coisa da outra)”. Ou seja, qualquer um que fizer a crítica da democracia parlamentar só pode, para Fausto, abraçar pregações anti-democráticas.

Para mim, este é um pensamento dogmático e inaceitável. Primeiro, porque ele peca pelo mesmo equivoco que Fausto me imputa. Em dado momento de seu texto, ele diz, a respeito de minha defesa da importância de compreender o que esteve em jogo nos projetos estéticos e políticos vinculados à temática do “homem novo”, projetos que animaram a crítica dos limites normativos de antropologias naturalizadas: “Falta a Safatle como aos seus modelos um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica, que emergem frequentemente dos projetos escatológicos de ‘salto’ no futuro”. Eu diria, de minha parte, que falta a Fausto um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica que emergem dos projetos de defesa dos limites atuais de nossa democracia parlamentar. Ou seja, há simplesmente uma incapacidade de compreender como regressões podem ocorrer nas estruturas políticas vinculadas a processos de racionalização social.

Por esta razão, Fausto precisa levar à caricatura toda inventividade na constituição de mecanismos de democracia direta, mecanismos estes que podem tomar a experiência democrática por outra via. Assim ele o faz quando ridiculariza minha forma de insistir na institucionalização de decisões que devem passar por plebiscito (como declarações de guerra, políticas econômicas em época de crise, entre outros exemplos que apresentei no livro). Vejam que, em momento algum, preguei alguma forma de dissolução do Parlamento ou “liquidação da democracia parlamentar”. Falei de transferência de funções do parlamento para mecanismos de democracia direta, de direito de resistência e recuperação do conceito de soberania popular, o que, para Fausto, já é uma pregação anti-democrática. No entanto, se quiserem um bom exemplo do que tenho em mente, basta lerem a nova constituição da Islândia, com sua lei que permite à população exigir que decisões do Parlamento só tenham validade caso ratificadas por plebiscito, desde que 10% dos seus 320.000 habitantes assim o exijam. Há realmente algo de pregação anti-democrática nisto? No entanto, este era o horizonte de ações que meu livro procurava estabelecer.

Ou seja, ao contrário do que pensa Fausto, não sou um “inimigo” da democracia parlamentar. Este jargão amigo/inimigo parece-me, na verdade, uma maneira infantil de tratar de temas desta natureza. Falei em necessidade de “superação” da democracia parlamentar e ninguém melhor do que Fausto sabe a diferença entre uma superação e uma negação simples, entre uma superação e uma “recusa inegociável de toda democracia parlamentar”. O problema é que Fausto acredita que estou às voltas com a tentativa de defender o modelo de crítica da democracia parlamentar de Badiou e Zizek. No entanto, nunca, em lugar algum, fiz a defesa acrítica deste modelo. Em alguns textos, eu simplesmente o apresentei, mas nunca o defendi de maneira absoluta. Ao contrário, já em 2001, quando poucos eram os que, no Brasil, liam tais autores, publiquei um texto em que pode se ler claramente minhas ressalvas à maneira de Badiou eleger a democracia como significante inutilizável[1]. Por outro lado, publiquei, já em 2005, um texto em que criticava a dificuldade de Zizek em pensar de maneira adequada o problema da violência política[2].

A meu ver, tal mal-entendido produzido por Fausto se explica da seguinte forma: para defender seu esquema a qualquer preço, ele precisa projetar em meu livro, sistematicamente, proposições que simplesmente nunca enunciei. Ou seja, para mim, sua resenha sobre meu livro A esquerda que não teme dizer seu nome visa, muitas vezes, um inimigo que não está lá no meu texto; inimigo representado por figuras como Zizek e Badiou. Fausto precisa reduzir todo pensamento que lhe é estranho a uma matriz comum para, com isto, justificar melhor seus temores de sempre.

No entanto, como não estou no negócio da esconjuração ou da cruzada de denúncia contra pretensos farsantes, vejo-me na possibilidade de reconhecer contribuições relevantes de certos autores sem precisar assumir seus erros ou os pontos que, até para eles mesmos, ainda não estão completamente definidos. Nestes casos, trata-se de praticar um tipo de pensamento para o qual a proximidade não significa adesão. Sobretudo, trata-se de recusar uma versão belicista da filosofia contemporânea na qual pensar equivale a escolher certos autores como inimigos intransponíveis a respeito dos quais nenhum reconhecimento de relevância é possível. De fato, isto eu me recuso a fazer.

Da mesma forma, se trouxe a baila Claude Lefort em meu livro foi para dizer que mesmo autores que estão dispostos a fazer a defesa da democracia parlamentar reconhecem a necessidade de dissociar direito e justiça, Estado democrático e Estado de Direito.  Diga-se de passagem, não disse que era possível passar da transgressão própria a uma greve ou a uma manifestação ecológica à crítica do Estado democrático. Há má vontade nesta afirmação, pois simplesmente afirmei a possibilidade de passar de tais transgressões à crítica do Estado de direito como horizonte geral de judicialização da política. Mas, para mim, é sintomática a impossibilidade de Fausto aceitar distinções entre Estado democrático e Estado de Direito atualmente constituído, entre democracia e democracia parlamentar.

Mas de todas as críticas que Fausto endereça a mim aquela que é a mais prenhe de má-vontade diz respeito a minha pretensa: “filosofia mallarmeana-vulgar, que pensa a história como um jogo de dados”. Ele se refere a minhas discussões a respeito dos fracassos históricos e dos movimentos de efetivação política de idéias de refundação social. A este respeito, julgo ser sinal de desrespeito acreditar que poderia imaginar coisas tão toscas quanto “Stálin tentou, Mao tentou, Pol Pot tentou… Não deu certo. Vamos tentar de novo…”. Se Fausto realmente acredita que eu poderia pensar algo desta natureza, recomendo que ele deixe de me tratar como idiota. O último que falou algo parecido a respeito de meu livro foi um jornalista português de direita, José Pereira Coutinho. De Fausto, eu esperava um pouco mais.

Deixo aos leitores um trecho de meu livro a respeito desta questão. Avaliem por si mesmos se, de fato, trata-se de uma “concepção mallarmeana-vulgar da história”: “a experiência histórica do século XX deve nos servir para reconhecer que os fracassos de uma ideia não implicam seu abandono, mas maior consciência de sua falibilidade [será que tenho de colocar isto em negrito?]. Neste sentido, poderíamos lembrar aqui de Adorno e afirmar que agir tendo em vista a consciência de nossa falibilidade é a primeira condição para uma ação moral”.  Imaginar que isto legitima algo como “Não deu certo. Vamos tentar de novo…” foge à minha capacidade de compreensão.

Formulações pouco claras

Das críticas que Fausto endereça a mim, reconheço que há uma que indica formulações pouco claras de minha parte. Ela se refere à minha defesa do universalismo. Fausto acusa-me de professar um “universalismo estreito, fechado às diferenças”. Esta acusação já fora feita também por Caetano Veloso, Idelber Avelar, entre outros. Lembro inicialmente que não foram poucas as vezes que publiquei na grande imprensa textos defendendo explicitamente o casamento homossexual, o direito das mulheres ao aborto, o direito ao respeito às diferenças religiosas (como o uso de véu entre garotas islâmicas), a relevância da política de cotas, entre outros pontos. Ou seja, se eu fosse realmente alguém fechado à importância das lutas que se consolidaram no interior da dita “política das diferenças”, minha atitude seria completamente esquizofrênica. Como prefiro acreditar que a esquizofrenia não é uma das minhas patologias, parece-me que não encontrei formulações adequadas para expressar o tipo de universalismo que creio defensável.  Essas críticas acreditam que procuro um universalismo pré-política das diferenças. Na verdade, creio que é possível pensar um universalismo que apareça como motor de uma “política pós-identitária”.

Parti da hipótese de que a política das diferenças, que animou as lutas sociais a partir dos anos 1970 e que ainda tem importância decisiva no processo de universalização de direitos para grupos vulneráveis e com forte histórico de discriminação (negros, homossexuais, minorias religiosas e linguísticas, etc.), não pode ser o horizonte regulador de nossas lutas. É inegável que tais políticas permitiram avanços sociais através da consolidação de sociedades multiculturais. No entanto, elas correm o risco de provocar uma atomização social por fornecer a imagem de uma sociedade fortemente definida por padrões identitários.

Tal atomização faz com que indivíduos se vejam, inicialmente, como portadores de identidades claramente determinadas que devem ser defendidas e reconhecidas. Como resultado temos a compreensão de toda noção de “universalismo” como potencialmente totalitária e a transformação da cultura como campo fundamental do político, com a sua exigência da afirmação e visibilidade das diferenças.

Esta estratégia, no entanto, mostrou nos últimos anos seus limites. Não por outra razão, as sociedades multiculturais são assombradas, atualmente, por fortes desejos de exclusão. Pois a política das diferenças nos leva a colocar perguntas como: até que ponto consigo tolerar uma diferença? Ou seja, o outro é visto por mim como potencialmente diferente e intolerável. Não por outra razão, “tolerar” alguém tem o sentido de suportar o mal que sua presença me faz. Quem “tolera” alguém pensa, no fundo: – Melhor que ele não existisse, mas como ele está aí, não há nada mais a fazer, tenho que tolerá-lo. No limite, as sociedades multiculturais, estas animadas pela tolerância como afeto político, precisam construir a imagem da diferença intolerável. As mulheres muçulmanas de véu são um bom exemplo.

Por isto, defendi que a indiferença pode ser um afeto político importante. Mas pode-se argumentar que não estaríamos melhor elevando a indiferença a afeto político central. Não por outra razão, o termo traz conotações negativas, como “não me importar com a sorte do outro”, “ser insensível ao que o outro representa”. No entanto, podemos dizer que há duas formas de insensibilidade. Posso ser insensível ao outro por tê-lo expulsado do meu mundo, mas posso também ser insensível ao outro por não vê-lo mais como outro, por estar em uma zona de indiferenciação entre eu e outro. Neste sentido, minha insensibilidade é, na verdade, maneira de dizer: – Sua diferença não me toca porque nenhuma diferença me é estranha.

Do ponto de vista político, trata-se de aplicar uma liberalidade que retira o cerne do conflito social da afirmação das diferenças culturais e de costumes. Isto não significa voltar para trás, mas pensar um modelo de institucionalização de zonas de indiferenciação.

Posso dar como exemplo o problema do casamento. Estamos atualmente diante de discussões a respeito da autorização do casamento entre homossexuais. Reivindicação legítima por excluir largas parcelas da população do direito de reconhecimento jurídico de relações afetivas entre sujeitos autônomos. Mas poderíamos aproveitar tal momento para se perguntar se o Estado não deveria, pura e simplesmente, parar de legislar sobre a forma da vida afetiva de seus cidadãos.

O contra–argumento clássico consiste em dizer que, ao deixar de legislar sobre a forma do casamento, o Estado desguarnece aqueles que são mais vulneráveis (no caso, as mulheres). Há ai, no entanto, um problema maior.  A despeito de legislar sobre questões de sua alçada (como as relações econômicas no interior da família, o problema da posse dos bens em caso de separação, direito de pensão etc.), o Estado legisla sobre aquilo que não lhe compete (a forma das escolhas afetivas dos sujeitos). O Estado legisla sobre questões de ordem econômica, não sobre questões de ordem afetiva. Mas o casamento não é simplesmente um contrato econômico. Ele é, antes de mais nada, o reconhecimento de um vínculo afetivo.

Neste sentido, nada impede que o Estado legisle sobre as questões estritamente econômicas no casamento, nas uniões estáveis, calando-se sobre a forma destas uniões (se entre um homem e uma mulher, duas mulheres, duas mulheres e um homem etc.).  O mesmo acontece com as leis europeias absurdas sobre uso de véu. A despeito de defender mulheres da opressão, o Estado entra no guarda-roupa de seus cidadãos. Muito mais correto seria criar leis gerais que simplesmente proibissem alguém de usar vestimentas que não quer. Ou seja, nos dois casos, o Estado moderno precisa aprender a lidar com zonas de indiferenciação: um marco fundamental para políticas pós-identitárias. É isto o que entendo por “indiferença ‘as diferenças”. O que é engraçado é que creio que nem mesmo Fausto pense diferente.

Maus defuntos

Por fim, elenco algumas colocações que Fausto me imputa na tentativa de demonstrar que, em meu livro, criei uma espécie de monstro conceitual ao tentar aproximar as posições políticas de Badiou, Zizek, Agamben, Derrida (todos pretensamente “pós-estruturalistas”) e de Adorno e Lefort (representantes de uma tradição esquerdista democrática).  Como se eu fosse uma espécie de chapeleiro maluco da filosofia.

Bem, é interessante inicialmente lembrar que, em momento algum, fiz referência a Adorno em meu livro. Tenho dificuldade em entender por que seria cobrado por algo que simplesmente não fiz. O que há de mais engraçado é que, no único momento em todos os meus livros em que, por exemplo, articulei Adorno e Zizek foi nas paginas 202 a 204 de Grande Hotel Abismo ao mostrar como Adorno pode nos auxiliar na criticar à teoria da violência de Zizek. Ou seja, não tentei colocá-los juntos, mas separá-los. Diga-se de passagem, Fausto se equivoca ao dizer que a “caricatura do pós-estruturalismo” (ou seja, Badiou e Zizek) serve-se de Adorno. Na verdade, os dois se distanciam explicitamente do frankfurtiano em mais de uma ocasião[3].

Segundo, creio que Fausto é pouco preciso no seu uso do termo “pós-estruturalista”. Em contexto algum Badiou e Zizek são “pós-estruturalistas”, nem sequer caricaturas. Ao contrário, eles representam uma tendência bastante crítica ao pensamento de Derrida, Foucault, Deleuze e Lyotard, mesmo que seja uma crítica que aceita o diálogo. Uma das premissas de Zizek sempre foi retirar o pensamento de Lacan das leituras pós-estruturalistas. Badiou se vê como um platonista, o que não me parece um bom cartão de visita pós-estrutural.

Mas Fausto afirma também que o pós-estruturalismo “sequestrou” Adorno. Interessante esta transformação do diálogo possível entre duas tradições intelectuais em sequestro. Não basta uma pletora de comentadores (como Martin Jay, Axel Honneth, Peter Dews, Jay Bernstein e mesmo Habermas) reconhecer a partilha comum de problemas e diagnósticos a respeito da crítica da razão, da função da reflexão estética, dos impasses da filosofia da consciência, da reificação da linguagem ordinária enquanto espaço de reconhecimento intersubjetivo, dos limites de uma racionalidade procedural para a compreensão da ação moral e do caráter alienante de uma subjetividade centrada na figura do Eu . Para Fausto, reconhecer a possibilidade de paralelismos entre Adorno e experiências intelectuais da filosofia francesa contemporânea é, de antemão, inaceitável porque Foucault e seus amigos seriam “anti-humanistas”. Isto lhe economiza ir diretamente aos textos. Com isto, Fausto parece ignorar que problemas como a emancipação estão presentes em autores como Foucault (basta ler os últimos cursos no Collège de France e suas reflexões sobre a noção de “cuidado de si”) e Deleuze (basta levar a sério o horizonte de reconciliação entre vida social e economia psíquica subjetiva pressuposto por O anti-Édipo). Por sinal, este hábito de criticar os filósofos franceses contemporâneos sem lê-los de maneira sistemática não começou hoje entre nós.

Na verdade, nunca disse que Adorno era anti-humanista (para tanto, Fausto se apoia, em uma epígrafe que utilizei em capítulo de Grande hotel Abismo). Mas se ele tivesse lido meu texto perceberia que simplesmente afirmei que Adorno tinha uma crítica do humanismo e da figura moderna do indivíduo. O que não poderia ser diferente para um leitor atento de Freud. Disse também que, no interior das querelas sobre o anti-humanismo francês, deveríamos estar atentos à importância da crítica ao que Foucault um dia nomeou de “sono antropológico”, ou seja, à presença insidiosa de uma antropologia profundamente normativa nunca claramente tematizada a servir de horizonte de validação e legalidade dos critérios intersubjetivos que procuram racionalizar nossa forma de vida. Afirmei, por fim (conforme pág. 222 de Grande Hotel Abismo), que as estratégias de Adorno e do pensamento francês contemporâneo (a exceção de Lacan) não eram simétricas, já que Adorno estava, mesmo assim, disposto a conservar a centralidade da categoria de sujeito. Mas Fausto só consegue ver nestes debates um convite perigoso ao niilismo moral, ao irracionalismo e à violência política desenfreada, no que, ao menos neste ponto, sua leitura não se distingue muito da crítica conservadora mais ferina.

Bem, eu poderia continuar indefinidamente tal discussão, mas queria apenas mostrar que o livro que Fausto leu não foi aquele que escrevi.  Respeito as posições de Fausto, mesmo que não concorde com elas. Continuarei respeitando, e admirando seus textos, mas sem a crença de que, em algum momento, poderemos participar de um debate. Para mim, depois desta resenha, ficou definitivamente claro que tudo o que conseguiremos fazer é uma sucessão de mal-entendidos, desencontros e equívocos. A filosofia está cheia de diálogos que, no fundo, nunca ocorreram. Este é apenas mais um.


[1] Ver SAFATLE, Vladimir; “ Os novos sofistas”; IN: MEIRA, Milton (org.) Jornal de resenhhas – seis anos, vol. II, São Paulo : Discurso Editorial, 2001.pp. 1844-1846,

[2] Ver SAFATLE, Vladimir; “Lenin com Lacan”, In: Margem Esquerda, n. 6, 2005

[3] Basta ler BADIOU, Alain; “La dialectique negative d´Adorno” in Cinq leçons sur le cas Wagner, Paris: Nous, 2010 e o primeiro capítulo de ZIZEK, Slavoj; O mais sublime dos histéricos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991

A democracia que não veio

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Vladimir Safatle

Normalmente, aqueles que mais têm a palavra “democracia” na boca são os que, no fundo, menos acreditam nela. Eles se portam como defensores dos valores democráticos apenas para conservar desesperadamente as imperfeições que a versão atual da democracia é incapaz de superar. Na verdade, quando repetem que “a democracia é o pior sistema, mas o único possível”, é porque amam suas distorções. Pois a única posição realmente fiel ao conteúdo de verdade da democracia consistiria em dizer: a democracia não está realizada, ela é uma ideia por vir.

Isto não significa que a realização imperfeita de uma ideia seja completamente falsa. A democracia por vir não é a negação simples, a recusa absoluta da democracia que temos atualmente. Mas ela é a mudança qualitativa de seus dispositivos e construção de novas dinâmicas de poder.

Podemos mesmo dar três razões que nos permitem compreender por que esta democracia por vir ainda não veio. Uma delas é a confusão deliberada entre o jurídico e o político. A verdadeira democracia admite situações de dissociação entre o ordenamento jurídico e exigências de justiça que alimentam as lutas políticas. Esta dimensão extrajurídica própria à democracia nos lembra que há uma violência eminentemente política que sempre apareceu sob a forma do direito de resistência e do reconhecimento do caráter provisório das estruturas normativas do direito. A estabilidade institucional da democracia não significa a perenidade absoluta do ordenamento jurídico atual. Ela significa que a instabilidade da violência política, uma violência que não é a simples eliminação simbólica do outro, será reconhecida no interior mesmo das instituições sociais.

O segundo ponto é o medo atávico da participação popular direta. As estruturas representativas da democracia parlamentar foram criadas para suprir a impossibilidade material da presença física da população no processo de deliberação legislativa cotidiana. Hoje, com o desenvolvimento tecnológico e com o advento das sociedades de alta conectividade, foram dadas as condições materiais para o início de uma verdadeira democracia digital. Vários processos deliberativos podem passar para a esfera da deliberação plebiscitária.

O terceiro ponto diz respeito à relação de reconhecimento entre Estado e cidadão. Não é possível pensar o campo da política sem o Estado. É ele que permite a ampliação de escala de processos gerados na esfera local. É ele que permite a implementação institucional da universalidade. No entanto, vivemos em uma época de esgotamento do Estadonação com suas exigências de conformação identitária e sua capacidade de gerir processos econômicos em sua fronteira. Este fim do Estado-nação pode dar lugar a dois fenômenos: o retorno paranoico a identidades profundamente ameaçadas ou o abandono da identidade como operador político central. Isto significa não a anulação deliberada de toda e qualquer demada identitária, mas a construção de um espaço político de absoluta indiferença às identidades; de uma política da diferença à implementação política de zonas de indiferença. Isto implica um estado capaz de socializar sujeitos em seu ponto de indeterminação. Ou seja, a função do estado não pode ser a determinação completa dos sujeitos através da gestão de processos disciplinares e de controle. Sua função é a gestão da indeterminação. Isto pode se dar, por exemplo, através da eliminação de aparatos jurídicos ligados à perpetuação de hábitos e costumes.

Por fim, não é possível pensar problemas ligados à democracia sem pensar os riscos advindos da consolidação de grandes conglomerados globais de mídia. Eles têm tendência a monopolizar discussões sobre liberdade de expressão sem nunca discutir as redes de interesses econômico-financeiros que permeiam tais conglomerados e direcionam sua expressão. Da mesma forma, eles tendem a não discutir como setores da opinião são, muitas vezes, marginalizados.

A Covardia do Exemplo

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A linguagem é a casa de tortura do Ser

Slavoj Zizek

CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER

O psicanalista Contardo Calligaris

A recente discussão sobre o valor dos dilemas para o desenvolvimento do pensamento moral, envolvendo Contardo Calligaris, Vladimir Safatle, Marcelo Coelho e Hélio Schwartsman surpreende antes de tudo pela civilidade das abordagens respectivas e pelo cruzamento elucidativo de perspectivas. Contrariamente ao jornalismo cultural amorfo e à crítica social de costumes de ocasião a controvérsia em pauta mostra como a ética e a política são terrenos no quais emitir ideias e defender posições compromete indelevelmente os envolvidos. Resumir posições e retomar argumentos fica um tanto mais perigoso depois desta afirmativa, mas aqui vai.

Contardo, em sua coluna Para que serve a tortura?”, postula que a tortura é um meio eficaz para obter confissões. Há contexto, como a inquisição, nos quais ela funciona mais como exercício sádico do que forma genuína de obter a verdade. Seria o caso também da “tortura psicológica” que eventualmente os adultos perpetuam contra crianças em nome da educação. A humilhação envolvida neste tipo de confissão gera uma posição de resistência inútil para o desenvolvimento moral. Mas existiriam situações nas quais a ponderação sobre a aplicação da tortura seria pertinente? E aqui vem o exemplo, ilustrado por personagens como Capitão Nascimento e Jack Bauer, com o objetivo aparente de nos levar a pensar um caso limite.  O tema da tortura mostra-se então apenas um caso extremo da tese de que nosso raciocínio moral depende de nossa capacidade de levantar, suportar e ponderar a partir de dilemas.

Toda vez que nos afastamos irreflexivamente de um dilema por mera adesão a princípios, neste caso: “tortura nunca mais”, nos impedimos de exercer a dúvida, a incerteza e a crítica que nos levam à construção da liberdade e autonomia e à renúncia da minoridade baseada na obediência a cartilhas. O exercício sobre dilemas, refratários a regras de ação convencionais, opõe-se a confirmação de certezas que pré-decidem como se deve agir em qualquer universo contextual. Já em outros trabalhos Contardo tem insistido na referência à Kolhberg, filósofo piagetiano da década de 1930 que estudou o desenvolvimento moral a partir do método dos dilemas e da separação entre moralidade convencional, baseada na adesão a costumes e autoridades externas, em contraste com a moralidade pós-convencional, determinada pela capacidade de questionar a aplicação a regra ao caso. Exemplo: um pai deve decidir se assalta ou não uma farmácia para obter o remédio imprescindível para a sobrevivência de seu filho. O princípio “não roubar”, opõe-se à contingência de que o filho depende do remédio e ao fato de que o pai ama seu filho. Esta abordagem procede por estudo de casos, não por meio de modelos experimentais, como a teoria dos jogos que utiliza amplamente o dilema dos prisioneiros para pensar modelos de decisão. Kohlberg estuda a natureza da oposição entre princípios e circunstâncias de forma correlata ao tipo de pensamento e ao estágio de eticidade envolvido. Seu método privilegia o processo de decisão, não a alternativa final tomada pelo indivíduo. Exemplo: se alguém pode alterar o curso de um trem de tal forma que este em vez de atropelar cinco pessoas ou mate, digamos, mil pessoas, ele deve ou não agir para mudar a rota do trem, aumentando assim sua reponsabilidade nestas mortes?

Seguindo adiante no método de generalização de dilemas, Contardo coloca a seguinte opção: “se alguém sabe onde está uma criança aprisionada, que vai morrer asfixiada se o tempo avançar, esta pessoa deve ser torturada para que salvemos a criança?” O experimento mental assume que a tortura é eficaz para produzir confissão e que não existe dúvida de que o torturado sabe onde está a vítima.

A controvérsia que se seguiu parece assumir como ponto de partida que os exemplos nunca são indiferentes. A tese lacaniana de que não há metalinguagem aplica-se aqui mais como consideração ética, ou meta-ética, do que como regra cognitivo-epistemológica. O método dos dilemas é basicamente um método em torno do uso e extensão de exemplos, a forma e conteúdo pelos quais decidimos a aplicação do caso à regra. Daí que quanto mais complexo, paradoxal e impensável o dilema maior a divisão subjetiva, consequentemente maior imersão ética e autonomia. Mas em alguns casos a posição ética não consistiria exatamente em recusar o dilema?  Em sua discussão sobre o fundamentalismo, com Ives Gandra Martins, Contardo dá um bom exemplo disso:

Por isso, no debate (ou na gritaria) entre homossexuais e evangélicos, por exemplo, nem preciso decidir se gosto mais de Oscar Wilde ou do apóstolo Paulo.

O processo de generalização, tão caro à epistemologia construtivista, sinaliza uma evolução rumo à “universalização” da moralidade. Portanto, de onde advém a eticidade da recusa de certos dilemas. O dilema não é indefinidamente generalizável e detectar o limite e as razões de sua generalização, o coeficiente de “elasticidade” do exemplo, constitui outra face do progresso da moralidade.

A resposta de Vladimir Safatle consiste em uma crítica ao uso de situações experimentais deste tipo para pensar a moralidade. A suposição de que a tortura é uma técnica eficaz de extração da verdade afasta muito da situação real de tortura, na qual muitos se calam.  Ainda, a escolha de dilemas não é destituída de finalidade e efeitos políticos.  Todo dilema contém a suspeita de uma enunciação interessada. Daí que para indicar o limite de elasticidade deste dilema Vladimir pergunte: “um Estado que recorre sistematicamente à tortura deve ser salvo?”.  Nisso ele não trai as razões do método de Kohlberg-Contardo, ou seja, ele exagera a generalização do dilema para mostrar sua contradição. Questão de Método, o título da coluna, não parece ser uma alusão ao texto de Sartre, mas uma crítica à dissociação entre forma e conteúdo, enunciado e enunciação, instrumentos e fins éticos, princípios e exemplos, tema sobejamente tratado pelo método dialético no qual Contardo e Vladimir se formaram.  A expressão irônica que considera os “paradoxos morais de laboratório” um falso problema, critica a escolha do exemplo questionando a neutralidade do exemplo e sugerindo que o paradoxo deve ser pensado junto com a contradição na abordagem do raciocínio moral.

Contardo e Vladimir partem de fontes e formações intelectuais bastante próximas: a psicanálise e a filosofia, Lacan e a teoria crítica, Hegel-Kant e a crítica da cultura pós-estruturalista, a esquerda “esclarecida” e não a direita “pirotécnica”. Assim como o psicanalista defende a importância da dúvida e do dilema, o filósofo vem insistindo sobre a necessária insegurança ontológica dos juízos morais[1] e a existência de atos morais para além da lei[2]. Para a psicanálise a divergência tem uma inflexão clínica e politica. Podemos esperar uma moralidade pós-convencional de alguém que passa por uma psicanálise? A teoria do reconhecimento (em teoria social), ou a teoria do narcisismo (em clínica), deve admitir uma diferença entre moralidade (convencional) e eticidade (pós-convencional)? Em outras palavras, se os processos de individualização (lógica formal da decisão) e as instituições reais nos quais eles se dão (circunstâncias reais), reúnem-se na determinação do exemplo, apelar para a força do exemplo, seja como imitação, seja como problema, esconde a verdadeira questão, ou seja: se é possível pensar a ética sem a política?

A tortura é um caso limite para nossas regras pré-constituídas de pensar, mas também um exemplo político. O impacto moral do exemplo muda se o consideramos do ponto de vista do Estado, que pratica e sanciona a tortura, ou do indivíduo que se vê diante desta opção, por e com seus próprios meios. Aliás, este é o objeto da tese de Contardo sobre a perversão social como montagem perversa, ao modo dos carrascos voluntário de Hitler[3]. Portanto, é claro que o texto de Contardo não advoga o uso da tortura, mas o direito e o benefício de refletir sobre ela. Esta é a função do crítico social e do teórico da cultura, ainda mais quando este é um psicanalista.

Contudo, não seria a escolha do exemplo, o momento de sua colocação e, principalmente, o método de tratamento uma proposição de alta periculosidade política? Operação similar a propor plebiscito sobre a pena de morte (falando em dilemas), como método de escolha livre, no contexto de massas enfurecidas sedentas de vingança. Ora, o contexto não é obscuro e indeterminado: Abu Ghraib,  Guantánamo, a guerra ao terror, e particularmente o filme textualmente mencionado “A Hora mais Escura” de K. Bigelow. Neste sentido o benévolo convite: vamos dar uma chance aos vilões, olhar as coisas do ponto de vista de Jack Bauer, surge como ponto de vista alternativo ou como regra?

Aqui as teses de Kohlberg são suplementadas pelos desenvolvimentos de Kahneman que mostram como nós representamos nossas escolhas morais de modo muito diferente da maneira como efetivamente agimos.  Isso duplica o problema: há princípios de ação, cartilhas, imperativos universais (reais e imaginários) e há circunstâncias de ação, casos, particularidades concretas (reais e imaginárias). Há dilemas, há falsos dilemas e há também os dilemas forçados. Recado inevitável: o colunista não advoga que analisar um dilema moral implique sancionar a alternativa binária dos termos na qual a situação se apresenta (entre preto e branco há os 50 tons de cinza).

Contudo, assim como existe um infinito dentro do dilema há um infinito fora do dilema. A relação entre a conjectura e o mundo real pode ser, ela mesma, real e desencadear efeitos no mundo real.  Para tanto basta admitir que existem dois tipos de hipóteses: aquelas que afetam as condições de sua enunciação e aquelas que não afetam  suas próprias condições de enunciação. Por exemplo, levantar a hipótese da existência de um planeta para além de Plutão e que ele influencia a órbita dos outros planetas conhecidos não afeta, em tese, as condições da enunciação. Ele não transforma ética, política ou moralmente aquele que enuncia a hipótese[4]. Mas há hipóteses que transformam quem as enuncia e corrompem a situação de enunciação na qual elas emergem. Aliás, esta é uma das maneiras de definir o inconsciente. Um sonho, um chiste, um sintoma podem ser lidos como hipóteses que alteram o sujeito que as enuncia. É como dizer, no interior de uma relação amorosa: “suponhamos que você esteja me traindo”. Inevitavelmente esta “hipótese” transformará a relação no interior da qual ela é proferida.  Isso pode representar um incentivo à vida de fantasia do casal, mas certamente implica admitir que a relação entre hipótese moral levantada e posição desejante ou política dos envolvidos não é de separação metodológica garantida por alguma instância de metalinguagem. Ou seja, o problema não é a cartilha explícita e monótona das injunções morais, mas sua relação com a cartilha particular representada pelas perguntas morais no contexto parcial, ainda que insabido, de sua própria enunciação. É a nossa “hiddden agenda” (a cartilha escondida), por vezes contrária às intenções declarativas. Ela decorre tanto da divisão subjetiva induzida pelo dilema, quanto da posição no mundo real do exemplo escolhido. Como se pode perceber a questão agora assume implicações imediatas para a crítica cultural quando se escolha uma obra ou outra para o comentário ou para a crítica.

A transformação pragmática da enunciação pode acontece em dilemas de escolha do tipo: de que lado você está? Dos que usam cartilhas que torturam o pensamento, tais como militantes, patrulhadores, em geral de esquerda, que não admitem que certos temas sejam colocados em questão, ou dos liberais independentes dispostos a enfrentar de peito aberto qualquer assunto? Como observou Marcelo Coelho, nem todo dilema é produtivo do ponto de vista do raciocínio moral, e eventualmente, um dilema será mal colocado de forma a induzir uma transformação pragmática, por exemplo: Brasil: ame-o ou deixe-o. Ou seja, não seria uma covardia deixar que o exemplo “fale por si mesmo” para depois sugerir que ele está sendo mal interpretado?

O filósofo Vladimir Safatle

Além da benéfica divisão do sujeito, expressa pela moral provisória da modernidade, devemos acrescentar a igualmente perturbadora intromissão do objeto patológico, que nos leva a pensar, naquele momento, naquele contexto específico, no exemplo do torturador. O caráter indissociável entre forma universal (ou indefinidamente generalizável) do problema e conteúdo particular de sua enunciação (ou o exemplo em si) é um dos motivos que já levaram Contardo, em outros momentos, a aproximar os juízos estéticos dos juízos morais, a desfazer da separação entre ética e moral, constituindo ainda uma regra de ação clínica óbvia para qualquer psicanalista: os exemplos nunca são meros exemplos. As ilustrações dizem sempre mais ou menos do que o texto. Quem dá o exemplo já está prescrevendo seu contexto de aplicação. Chegamos assim a uma espécie de critério não normativo de responsabilidade intelectual.

Marcelo Coelho percebeu com clareza este ponto ao passar da alternativa entre “laboratório-neutro” ou “política-interessada” para a oposição entre ficção e vida real. O caso do Estado de terror baseia-se no uso controlado do “exemplo” como norma e a tortura como “método de governo”. Ele também questiona a noção de generalização indicando que o exagero não é um mero erro cognitivo. Ele fornece vários “contra-exemplos” da generalização de dilemas ao absurdo como o canibalismo nos andes ou a tortura ao torturador. Lateralmente, ele infiltra a questão da “influência” da televisão, do poder de indução da realidade gerado pelos “meros exemplos”, agora considerados em sua vertente de conjecturas ficcionais “institucionalizada”. A ideia de explorar o raciocínio moral a partir de mundos possíveis não é indiferente ao tipo e conteúdo exato do “mundo possível” que é escolhido. Mais uma vez bate à porta a intrusão do político no interior do universo da ética.

A posição de Hélio Schwartsman, opondo historicamente, em matéria de ética, deontologistas e consequencialistas, acompanha a crítica de Safatle e Coelho mostrando como a posição experimentalista, principalmente quando ela adere ao consequencialismo “puro”, em filosofia moral, nos expõe a contra-exemplos: o “quase” desastre nuclear de Three Mile Island, o “improvável” mentiroso kantiano, o incesto “secreto” entre irmãos. O método das comparações, por trás dos dilemas presume que temos como resolver cognitivamente o peso dos valores. No entanto, como tornar comensurável a dor de cabeça em cinco milhões de pessoas ou duas pernas quebradas? Ou seja, o valor de aprofundamento moral dos dilemas requer que eles sejam pensados no quadro de identificações.

Contardo  responde a estas objeções reforçando a dimensão metodológica do dilema como formato padrão da experiência moral moderna. A tortura funcionaria por pressupostos: não se assalta alguém que você acha que não tem dinheiro, não há dilema se você não pressupõe que assaltar é errado. O potencial emancipatório dos dilemas, contra a alienação minorizante das cartilhas, ocorre porque a identificação induz o essencialismo moral. O homem-cartilha, que pretende universalizar aquilo que na verdade são apenas disposições particulares de gosto ou inclinação, evita os dilemas. O intrigante nesta objeção é que ela remete justamente à tradição kantiana-piagetiana que pretende encontrar regularidades, quando não universalismos morais, no sujeito (a famosa tese de que em todas as culturas e épocas partilham da geometria de Euclides e da moral de Kant):

“ (…) um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais.

Ou seja, que as disposições morais têm uma história na qual os exemplos são articulados, por identificação, com princípios definindo o ato moral. Os exemplos tem uma história, eles se inscrevem em uma narrativa que os ultrapassa como indivíduos. Dissociar exemplos (como a tortura) de seus contextos de uso (como a guerra ao terror); assim como desligar a ficção (da onisciência do torturador) da realidade (na qual a tortura é aplicada independente de sua eficácia) não é um erro diante de cartilhas universalistas, é um erro diante das próprias premissas assumidas.

Em sua reposta ao dualismo entre cartilhas e dilemas, Vladimir Safatle volta a insistir que a decisão moral individual sempre carrega mais e menos “homúnculos” do que gostaríamos.  Matar Bin Laden em nome da segurança ou da vingança é uma coisa, matar Bin Laden como exemplo, de que a regra tácita do jogo tolera a tortura e a ilegalidade, são duas situações diferentes. O efeito “força de lei” ou “dilema concreto” não se aplica apenas ao código jurídico e abstrato. Há um conjunto de consensos que definem a forma como aplicamos a lei e como julgamos seu conteúdo moral. Um bom dilema perturba nosso sistema de identificações, mas um dilema melhor ainda, nos apresenta um fragmento de real como impossível. Ele nos transforma não apenas quando o resolvemos, mas quando nós o enunciamos. Não seria este o caso da moralidade pós-convencional?

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP


[1] Safatle, V. (2012) Grande Hotel Abismo: para a reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes.

[2] Safatle, V. (2002) “Um ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano”. In Vladimir Safatle, Um Limite Tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. Unesp, São Paulo.

[3] Calligaris, Contardo Luigi (1993) Recherche sur la perversion comme pathologie sociale. La passion de l’instrumentalité, thèse pour le Doctorat Nouveau Régime en Lettres et Sciences Humaines, Université de Provence Aix-Marseille I.

[4] Claro que se pode dizer que esta é uma condição contextual.  Na Idade Média ou entre os Astecas uma afirmação cosmológica deste tipo pode adquirir alta densidade moral e política. Isso apenas comprova a ideia de que exemplos e enunciações são covariantes e que a tensão entre forma e conteúdo é um elemento essencial do dilema moral. Ontologia e ética não estão tão dissociados quanto gostaríamos.

Nada aconteceu

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Comentando o tema da morte e do luto abordado por Christian Dunker na CULT de maio, Vladimir Safatle escreve sobre o árduo trabalho de conseguir encontrar lugar para nossas experiências

Vladimir Safatle

Na última edição da Revista CULT, Christian Dunker falou sobre a impossibilidade de lidar com o sofrimento que parece tornar-se uma marca de nossas sociedades contemporâneas, lembrando, entre outras coisas, das mutações na maneira com que fazemos trabalhos de luto. Em um momento onde, ao menos segundo o novo DSM-V, quinze dias de luto já é visto como uma reação patológica, gostaria de insistir em um aspecto de tal impossibilidade de lidar com o sofrimento ligado à experiência da memória.

Hegel escreveu uma vez sobre a capacidade do Espírito de desfazer o acontecido. Tal força de anulação era modo de reconciliação. Maneira das feridas do Espírito serem curadas sem deixar cicatrizes. O Espírito teria a capacidade de transformar as perdas e decepções em momentos necessários de um verdadeiro processo de conquista. Tal como esses que guardam a confiança infantil de que, ao final, tudo se arranjará, a maneira do Espírito desfazer o acontecido seria a crença de que a última palavra será o verdadeiro nome e a verdadeira realização das promessas que estavam no início.

Um século depois, Jacques Lacan utilizou a mesma ideia, mas para falar agora de um modo neurótico de defesa próprio àqueles que não sabem como suportar um acontecimento, àqueles que, no fundo, anseiam por uma vida desprovida de todo e qualquer acontecimento. Pois o acontecimento não é exatamente aquilo que ocorre, mas o que deixa traços. É possível haver ocorrências intensas, novas e nem por isto elas serão acontecimentos. Pois elas poderão desaparecer sem produzir sonhos, memórias corporais, angústia. Basta que elas ocorram diante de alguém que teme a vulnerabilidade e a ambivalência que a intensidade das ocorrências necessariamente produz. O medo e a raiva da vulnerabilidade lhe farão esquecer. O amor pela autonomia lhe fará fugir de toda situação de dependência.

Aproveitemos esta discussão para uma consideração sobre a própria noção de “acontecimento”.  Se sua característica fundamental é ser o que deixa traços, é porque não se narra um acontecimento como quem narra uma história edificante. Sua capacidade de forçar a memória é proporcional ao trabalho que ele gera. Um trabalho próprio às coisas difíceis de serem escritas por parecer não se encaixarem completamente nos padrões de histórias que conhecemos. Por isto, acontecimentos são tão raros e improváveis. Sua mistura indescritível de felicidade e tristeza, acolhimento e desamparo, impõe à memória um trabalho de reconstrução contínua, até sermos capazes de pensar de outra forma.

Talvez isto explique porque é tão comum, quando um encontro afetivo parece malogrado, um dizer ao outro: “Mas, afinal, nada aconteceu”. Mesmo que ocorrências intensas possam ter existido, nada aconteceu, porque é melhor nada ter acontecido do que encarar o árduo trabalho de conseguir encontrar lugar para experiências que seguiram rumos nos quais nos deparamos como nossas próprias limitações. Assim, apagar as ocorrências e negar a possibilidade de um acontecimento se constituir é a defesa mais forte para aqueles que não acreditam, como o velho Hegel, que as feridas do Espírito se curam sem deixar cicatrizes. Mas assim ficamos sem história.

O mesmo Hegel dizia que os momentos de felicidade são páginas em branco na história. Talvez seja o caso de completar afirmando que só os neuróticos querem uma vida feliz, com sua história desprovida de acontecimentos. Para além de uma vida feliz, há uma vida plena, que é algo outro.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

Fora da representação

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Em seu artigo no último número desta revista, Christian Dunker insistiu no anacronismo de nossas “teorias da mudança”, evidente diante das Manifestações de Junho. Ele lembrou, com muita propriedade, como a “possibilidade de que uma grande mudança [que] aconteça não pela força genérica dos fins, mas pela gravidade silenciosa dos meios contraria nossa crença na representação”. Daí a ideia de que “uma massa tem que ter um líder, um porta-voz, um partido. Uma massa que não declara o que quer, nos termos estipulados pelo poder, torna-se perigosa ou preguiçosa. É a temível massa tomada pela anomia, como postulava Durkheim, ou pelo pânico, como observou Clausewitz, a propósito do exército”.

De fato, tudo se passa como se, fora dos padrões estipulados de representação política e de determinação institucional, só pudesse haver o caos. Estamos tão presos ao “fetiche da representação” que só enxergamos um acontecimento com os olhos de quem se amedronta com o irrepresentável e com o indeterminado. Mas é da essência de todo acontecimento produzir uma espécie de “zona de indeterminação”. Nesta zona, a força corrosiva da negação opera seu trabalho.

Já Maquiavel lembrava: quando o povo sobe à cena do político, ouvimos apenas a potência do “não”. O povo não quer se espoliado, não quer ser oprimido, não quer ser calado. Mas, como sabem os artistas, a primeira palavra que se enuncia para que a criação seja possível é: “não”. Esta negatividade é a condição para toda verdadeira invenção democrática. Ela é o caminho que nos leva para um terreno fora da representação. Pois é certo que, pela primeira vez, o povo brasileiro demonstra a consciência de viver uma profunda crise de representação. Não apenas uma crise de representação política, que toca partidos, instituições e os três poderes da república. Vivemos também uma crise de representação da mídia: não por acaso carros de televisão foram incendiados pelos manifestantes. Vivemos ainda uma crise dos movimentos sociais tradicionais, como sindicatos, movimentos estudantis institucionalizados, entre outros.

Exemplo islandês

Estas crises não apareceram tendo em vista uma simples melhoria da qualidade da representação, como se as manifestações dissessem: queremos partidos melhores, conglomerados midiáticos melhores, sindicatos melhores. Creio ser correto afirmar que é a forma geral da representação que está colocada em questão. Não há que se recuar diante de tal situação, pois ela pode nos levar a uma vitalidade democrática ainda não experimentada.

Por exemplo, mesmo que admitamos a permanência de partidos, é provável que o povo não queira mais transferir todas as suas atribuições de poder para “representantes”. Ele quer guardar para si a possibilidade direta de decisão, de veto e de proposição. Questões federais ligadas a grandes projetos de infraestrutura, contração de dívidas, modos de gestão de crise, declaração de guerra podem e devem passar para a deliberação plebiscitária.

Há algumas semanas, escrevi que um belo exemplo desta confiança no povo resultante da crítica do primado da representação política podia ser encontrado no processo de feitura da constituição islandesa. Antes da Assembleia Constituinte reunir-se, a população decidiu apresentar um pré-projeto, que serviria de início para as discussões. Tal pré-projeto não foi escrito por juristas ou notáveis. Novecentas e cinqüenta pessoas receberam, ao acaso, um convite pelo correio chamando-as para se reunir em um ginásio a fim de produzir o pré-projeto. O resultado foi uma das constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à criação de mecanismos de participação popular.

Alguns podem ver neste exemplo uma ingenuidade de quem tem uma visão não antagônica da vida social, como se não houvesse luta de classes a dividir os interesses sociais. Mas uma proposta desta natureza é como uma prova seletiva, um pouco como Deleuze descrevia o eterno retorno nietzscheano. Quem está disposto a confiar no poder popular a este ponto? Quem suporta tal prova? Desta forma, aparece a verdadeira luta de classe: aquela que separa os que têm sempre uma boa razão para não confiar no povo, a não permitir que ele exista como força, e os que não têm medo de uma vontade popular sem tutelas e sem lideranças.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

O poder da psiquiatria

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Vladimir Safatle


Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão ideológica, com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na clínica do sofrimento psíquico.

Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a definição de causas dificilmente observáveis (como, por exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes com a figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que organiza distinções a partir de uma certa lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e condições que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento patológico. Desta forma, nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas, observável, imune aos juízos subjetivos do médico-observador e, acima de tudo, eficaz.

Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em tons edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes, demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo, modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.

Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa performance no trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá, então, cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido, não haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. A comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas pelo progresso da ciência.

Também não haveria razão alguma para se perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado pela medicalização, pela institucionalização crescente das discussões através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicização crescente dos diagnósticos.

Doença e política

Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?  Por um lado, uma sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e nos afetos por meio da definição do campo das doenças e das patologias. No interior desses modos de intervenção, não é apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também padrões esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade médica.

Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para definir o transtorno de personalidade histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das atenções; 2) comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8 ) considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que se vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona exatamente a falta de especificidade de um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente qualquer pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau, todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira,  de “psiquiatrização da vida cotidiana”.

Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da doença, ou seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de sofrimento. Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como conflitos relativamente naturais em processos globais de transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em certos comportamentos. O que não poderia ser diferente se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não descreve uma espécie natural (natural kind), como talvez seja o caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.

Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.

De fato, com modificações, como as que diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.

Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação interessa.

Vladimir Safatle
é professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP


Da arte de nosso desejo de política

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Vladimir Safatle

Em sua última coluna, Christian Dunker lembrou de um possível descompasso entre a produção artística atual e as demandas de transformação política que parecem, cada vez mais, ocupar espaços públicos. Eu diria que este problema está vinculado não a uma questão de produção, mas de circulação. A sensibilidade política em mutação atualmente foi, como sempre, adiantada por experiências estéticas que marcaram os nossos últimos vinte anos.

Não é o caso de procurar estabelecer uma linha reta na qual temáticas e palavras de ordem políticas apareçam como material para a expressão estética. Se fosse o caso, não teríamos nada muito diferente de uma relação tipicamente propagandística entre arte e política. Na verdade, há uma sensibilidade, uma dinâmica afetiva que, à sua maneira, foi inicialmente impulsionada pela experiência estética. É neste ponto que devemos procurar alguma forma de proximidade.

Este é um ponto importante, pois não se trata de dizer aqui que manifestantes foram diretamente influenciados por proposições estéticas. Mas há de se fazer uma genealogia da sensibilidade política nascente. Uma genealogia que trabalha com relações indiretas, que tenta compreender como se constitui campos no interior do quais uma verdadeira forma renovada de pensar paulatinamente se afirma.

Certamente, a análise da produção artística atual não admite uma aceitação simples. Como a arte transformou-se, há muito, em espaço privilegiado de rentabilização financeira e em dinâmica social de produção de glamour para setores hiperfetichizados da cultura (como publicidade, moda, design, entre tantos outros), uma leitura da força transformadora da experiência estética contemporânea pede um primeiro momento de partilha. É na produção, no mais das vezes, mais estranha aos fluxos hegemônicos de circulação, com seus museus, revistas e prêmios, que encontraremos o que procuramos.

Tempo arruinado

No entanto, notemos algumas articulações importantes. Se é fato que um eixo maior das manifestações que começaram em 2011 é a procura de construir novos sujeitos políticos, fora de estruturas institucionais tradicionais, como partidos, sindicatos e outras representações, então deveríamos nos perguntar de onde veio a ideia de que há apresentação do que não se deixa completamente representar. Devemos nos perguntar também de onde vem a percepção de que caminhamos para um situação social de ruína e descrença, onde as afirmações do poder são feitas para não serem levadas à sério, onde a política não passa por um processo de argumentação, mas de mobilização contínua de afetos, como o medo, a insegurança e a constituição forçada de vínculos comunitários. De onde vem a consciência de que habitamos um tempo arruinado, sem acontecimento, a não ser sob a forma da recusa e da negação?

Tal consciência não é apenas o resultado da análise da realidade social e política, embora também dependa dela. Há algo que vem da frequentação demorada com experiências estéticas importantes. São elas que, de uma maneira indireta, dão uma certa garantia de que criar é possível quando recusamos tudo o que nos parecia natural.

Em um filme de David Cronemberg, intitulado Cosmópolis, o protagonista, um yuppie que vive isolado em sua limusine atravessando uma Nova York cheia de manifestações e engarrafamentos, afirma: “O capital perdeu sua força narrativa”. Esta consciência do esgotamento da força narrativa do capital, condição primeira para a construção de novas subjetividades políticas, nos foi ensinada pelas artes. Resta fazer o inventário deste processo. Mas isto nos exige um cuidado interpretativo com a produção atual que muitas vezes nos falta.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

A filosofia nua e crua

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Juvenal Savian Filho


Da reflexão mais especializada e “abstrata” à imagem mais crua e nua, circula o pensamento de Vladimir Safatle nessa entrevista, em que ele expõe ao leitor da CULT seu itinerário intelectual, sua posição diante de sérios debates filosóficos contemporâneos e seu engajamento político. De sua fascinação por Hegel, Freud e Lacan, Vladimir consegue passar a uma análise do sujeito (tanto do ponto de vista da clínica como do ponto de vista da epistemologia) e desta à política. O leitor encontrará aqui uma autodissecação da experiência de Safatle, jovem pensador brasileiro de destaque no cenário nacional e com importantes inserções também em contextos internacionais. O caráter aparentemente técnico e “abstrato” das primeiras respostas é melhor compreendido quando se chega à crueza das últimas, mas mesmo a carne das últimas mostra-se finamente articulada. Se a estrutura teórica ilumina as respostas mais nuas do final, percebe-se que a crueza já agia, latejante, desde o início da entrevista.

Você crê na utilidade de pensar uma instância reguladora dos bancos?

O presidente da Islândia tem uma bela frase. Ele diz que uma economia com bancos muito fortes é sinal de um país que vai mal. Pois os bancos drenam os melhores cérebros para o sistema financeiro, que é um sistema improdutivo por excelência. Se alguém é um ótimo engenheiro, o banco vai contratá-lo. Onde estão os engenheiros do Brasil? Estão nos bancos. Por que não temos engenheiros para extrair petróleo? Porque eles estão fazendo contas nos bancos. O que nós precisamos é enfraquecer o sistema financeiro. Não há nenhum país que realmente precise da quantidade de bancos que temos. Qualquer discussão econômica deve partir da reflexão de como quebrar a força de intervenção econômica dos bancos na economia mundial.

Você falou dos 12 últimos anos que, aparentemente, fecharam um ciclo na política brasileira. Que avaliação você faria desse ciclo?

O governo Lula pode ter tido vários problemas, mas tem coisas a pôr em seu favor na balança. Eu teria altas críticas, do ponto de vista político, mas reconheço que foi importante ele ter criado as condições para um sistema mínimo de segurança social no Brasil, assim como permitir um aumento real do salário mínimo de 50% acima da inflação. Nesse ponto, Lula não é a continuação de FHC. Mas seu maior problema está exatamente em uma das suas ideias mais importantes: a criação de um capitalismo de Estado no Brasil; um capitalismo no qual o Estado é não só o financiador dos maiores atores econômicos, mas também o parceiro de todos eles. O lado importante foi a quebra do processo de desmonte da capacidade de intervenção do Estado, herança de FHC. No entanto, o que aconteceu foi a transformação do Estado no financiador da oligopolização da economia. Um povo como o brasileiro, que tem uma capacidade empreendedora inegável, não teve a oportunidade de se colocar como empreendedor, porque não há nenhum setor da economia que não seja controlado por um oligopólio. Um exemplo clássico: o BNDES injetou uma fortuna na Friboi para ela se transformar num player global. O que eles fizeram com o dinheiro? Compraram todos os pequenos frigoríficos. Com o dinheiro do Estado, oligopolizaram a economia. Isso é uma coisa inaceitável, mesmo do ponto de vista capitalista. A única coisa que presta no capitalismo é a concorrência; e a gente não tem.

E o governo Dilma? O que tem para pôr na balança em seu favor?

Muito pouco. Foi um governo de inação absoluta. Achavam que bastava simplesmente gerenciar a herança de Lula. O país continua numa desigualdade econômica brutal, e não se promoveu uma reforma fiscal que obrigasse os ricos a pagar mais impostos e fornecer serviço para os mais pobres. Um país desigual como o Brasil não tem imposto sobre grandes fortunas, por exemplo. Não é possível nem dizer que o país tem imposto progressivo, porque nossa maior alíquota de imposto de renda é de 27,5%. Roosevelt, que não era nenhum comunista, para conseguir tirar o país da crise, implementou uma alíquota de 75%. Temos um governo que se diz de esquerda mas que nunca discutiu reforma fiscal como meio de combate à desigualdade econômica, o que é surreal. Como resultado, hoje as famílias da dita nova classe média têm seus salários corroídos por serem obrigadas a pagar educação e saúde privadas e não vão conseguir mais ascender socialmente. Qual é a resposta do governo? Nenhuma. O governo não teve capacidade de reação porque não tem ideia, não tem criatividade, não consegue pensar. Basta ver o tipo de resposta às manifestações por educação pública: “fiquem tranquilos, pois daqui a 8 anos a gente resolve o problema da educação com o dinheiro do Pré-sal”. Que tipo de resposta política é essa?

E quanto ao cenário das eleições 2014?

Há dois cenários possíveis. Podemos ter a gestão do vácuo político, que pode acontecer porque os candidatos que estão no páreo até agora são candidatos que conseguem o feito de se colocar à direita do governo. Isso é algo assustador, pois vimos a população dizendo que quer educação, saúde, transporte (o que significa que o Estado vai ter de arrecadar mais, vai ter de ter dinheiro e pessoas capacitadas), mas o que se vê nos programas de governo dos candidatos é um antiestatismo primário que lembra os anos 1990, sem dar conta das reais demandas da sociedade brasileira. Esse é um cenário possível. Gere-se o vácuo político. Outra possibilidade é a de que se radicalizem os extremos, tanto à direita quanto à esquerda, porque o Brasil tem uma direita forte. Se precisar ir para a rua, ela vai. É uma direita popular, que pode ser uma direita de costumes, econômica e política. Por isso, é  necessário que surja um polo de contraposição forte à esquerda, pois, se não houver, corre-se o risco de toda a agenda debandar para o lado da direita. Seria uma situação muito parecida com a da Europa. Há uma tendência mundial de fortalecimento do polo da direita, e o Brasil corre o risco de cair nisso. A não ser que surja outro polo que possa puxar para o outro lado.

Você é candidato a governador?

Hoje? Não. Entrei de fato em um partido, o PSOL, e isso pode soar um pouco contraditório para alguém que falou que acha que a política está além dos partidos. Mas entrei num partido que, de forma muito clara, compreendeu a necessidade de se pensar uma política para além dos partidos. É importante que isso se transforme numa pauta eleitoral, o que nunca aconteceria se a pauta não fosse encampada por um partido. A primeira coisa agora, antes de qualquer discussão sobre nomes, é criar uma clara plataforma para entrar na agenda do debate brasileiro. O que a população brasileira espera é uma alternativa clara. Quer saber como faremos a economia funcionar. A direita sempre tem uma vantagem: ela não precisa deste detalhamento porque opera pelo afeto mais sensível das pessoas, que é o medo (medo da insegurança, medo do Estado, medo da mudança etc.). É nisso que a direita é forte. A esquerda não pode fazer isso. Esse não é o afeto que mobiliza nosso campo político. O afeto que nos mobiliza é o da invenção, da confiança e da crença de que, apesar das dificuldades e das limitações, vamos conseguir criar algo melhor do que temos. Crença de que não estamos condenados a olhar para trás, como a mulher de Lot, até virar uma estátua de sal. As pessoas querem a experiência da liberdade efetiva, da criação, a experiência do enriquecimento – enriquecimento material, cultural e social.

Você pediu para ser fotografado num frigorífico. Qual a razão dessa associação entre o seu trabalho intelectual e a crueza da carne cortada?

Primeiro porque eu me lembrei de Sol Lewitt, que dizia: “eu quis retirar a pele das coisas para ver suas estruturas”. Essa é uma boa imagem do que é a filosofia. Existe um desejo dessa natureza em todo aquele que faz filosofia. Retirar a pele das coisas, esfolar um pouco as coisas, ou seja, ver um pouco aquilo que outros não gostariam de ver. Isto está longe de ser uma revelação epifânica. É uma complexificação da visão, acompanhada da decepção em relação a certezas do senso comum. É a consciência de que se vai andar muito tempo brigando consigo mesmo. Sartre tinha essa ideia: “filosofar é pensar contra si mesmo”. Não há nada mais natural, numa experiência filosófica, do que, num dado momento, perceber que se estava errado. A filosofia sempre terá essa agressividade, essa estranha agressão contra si mesmo. Pensei na história da carne também porque sempre fui muito impressionado pela capacidade de nos reconhecermos em um animal. Não é possível ficar diante de um animal morto e não se sentir concernido, porque aquela carne é parecida com a sua. É se ver numa outra posição, o que obriga a colocar uma série de questões. É uma modalidade inelutável de pensar contra si mesmo. Por fim, meu avô tinha uma fazenda de gado onde bois eram abatidos, então isso me remete ainda à experiência da infância.

Juvenal Savian Filho
é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo

Passeio da liberdade

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Na edição de abril, Vladimir Safatle, a propósito da discussão sobre os destinos de nossos sonhos e aspirações, opôs vida feliz e vida plena. Refratária ao luto, a vida feliz exige um tipo de história triunfal, planejada e edificante, na qual os obstáculos são necessários apenas para atestar a magnitude do herói. A moral desta história é “que nada aconteceu, nada se passou”. Nem poderia ter acontecido, pois se trata de uma forma de vida na qual a contingência radical não tem lugar. Nosso leitor, Geraldo Teixeira, também lembrou como o sofrimento situa-se neste hiato entre a vida e a morte e que a cultura, assim como nos ensina a sofrer, deveria nos ensinar a viver.

Nas semanas seguintes, vivemos a contingência radical em nome da qual a redução do aumento nas passagens de ônibus iniciou o movimento de renovação das formas políticas do país. Em várias de suas entrevistas e intervenções, o pequeno movimento social conhecido como Passe Livre foi confrontado com o vandalismo jornalístico próprio de quem faliu seu sistema de interpretações. A violência indignada dos interpeladores revelava como nossa “teoria da mudança” pode ser anacrônica. Exemplo vivo daquele que diz desejar um evento transformador, mas não consegue reconhecer sua realização quando ele se dá. Para a política do passado, que às vezes tem que encarar seu outono antes de viver sua primavera, toda transformação deve ter um guia, uma pauta, um interesse por trás. A ideia de que nossa insatisfação pode ser catalisa-da como um verdadeiro acontecimento, justamente por que ela ainda não tem um nome, ou porque ela ainda não adquiriu a fisionomia dos processos institucionais habituais, ou porque ela não se posiciona na geografia mental de que dispomos, torna-se então inaceitável. A possibilidade de que uma grande mu- dança aconteça não pela força genérica dos fins, mas pela gravidade silenciosa dos meios contraria nossa crença na representação. Uma massa tem que ter um líder, um porta-voz, um partido. Uma massa que não declara o que quer, nos termos estipulados pelo poder, torna-se perigosa ou preguiçosa. É a temível massa tomada pela anomia, como postulava Durkheim, ou pelo pânico, como observou Clausewitz, a propósito do exército.

Os mesmos teóricos que tornaram a felicidade um fator político, a partir do século 19, nos ensinaram que o medo e o desamparo são os afetos que devem dominar nossa interpretação da transformação social. Para eles, vida feliz é vida segura, que se apropria de si e de suas extensões como garantia de permanência sem impasses. Seria a vida feliz definida pelo seu único mandamento de não violência, aquela que Freud descreveu como determinada pela fuga do desprazer?

Temos que pensar uma vida mais além do ideal negativo de não ser perturbado (disturb) e de estar fora da ordem (disorder) para retomar as duas formas hoje hegemônicas para diagnosticar o sofrimento. Contra isso, a nova sensibilidade política traz consigo a coragem miúda, a insistência em pequenas ideias e a perseverança na coragem de lutar aquém do espetáculo da luta. A vida realizada sob seus próprios termos é sempre uma linha de passe, pequena demais para caber apenas na experiência de um indivíduo. E o que mais tememos não é tanto fracassar, o que satisfaz nossa paixão pela impotência, mas descobrir que nossos heróis eram feitos de molde passado, como a moeda falsa de Mallarmé.

Se a transformação é o único critério que torna uma vida realmente plena, do ponto de vista do desejo que a anima, devemos perguntar o que é “isso” que se passa no Passe Livre e que nos permite intuir a presença de algo ainda sem nome, ainda sem identidade, e que, por- tanto, não pode ser apropriado por nada. “Isso” é terrivelmente perigoso para as formas instituídas da vida feliz, por- que não pode ser controlado. Talvez o segredo esteja nas duas palavras: passe, que nos remete a passagem, travessia ou viagem; metáfora fundamental da vida. Ao lado dela, o único qualificativo que lhe é necessário e temporalmente indeterminado, livre; liberdade, ainda que porvir, metonímia maior do desejo.

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Em discussão: a força crítica da cultura

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Leitura

Da leitura do texto “Arte bloqueada” (clique aqui para ler) – no qual o filósofo Vladimir Safatle afirma que a cultura contemporânea abriu mão de sua força crítica para se tornar uma celebração capitalista – é possível sintetizar algumas das ideias apresentadas a seguir:

 

Síntese

– Uma das grandes conquistas do modernismo consistiu na compreensão de que toda verdadeira obra de arte é a constituição de um regime de crítica a modos de ordenamento que visam a se passar por naturais.

– Quando a arte perde a força de ser a figura de uma comunidade por vir, então a vida social não é mais capaz de enxergar a imagem de uma nova sociedade possível.

– Uma das maiores astúcias do novo capitalismo financeiro é retirar da arte sua força política.

– Quando movimentos revolucionários perdem força, o primeiro sintoma deste esgotamento é exatamente o fim da criação na arte.

– A arte nunca é o reflexo da vida social. Ela é, antes, a figura avançada daquilo que a vida social ainda não é capaz de pensar, daquilo que ainda não tem forma no interior de nossas formas hegemônicas de vida.

– Bloquear a força política da arte é impedi-la de fornecer a imagem do que ainda não existe.

 

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Exemplos de obras de arte cuja expressividade advém justamente de sua força política
– A canção Duas de cinco (de autoria de Criolo, Rodrigo Campos, Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral), que faz parte do mais recente disco do rapper Criolo – Convoque seu Buda – na qual é traçado um contundente panorama da vida nas periferias brasileiras.

– O conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, em que o autor faz uma crítica à instituição da escravidão de modo indireto, sem produzir discursos exaltados contra ela. (Disponível aqui )

– O filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, que trata dos vestígios que o modelo de conduta senhorial do passado deixou impressos nas relações entre as classes sociais no Brasil contemporâneo.

– O trabalho do grupo de teatro Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, cuja proposta é não somente investigar a teatralidade do rap, do funk e do hip-hop em espetáculos teatrais, como também dedicar-se ao ativismo cultural por meio de intervenções poéticas em espaços públicos da cidade. (Acesse a fan page aqui)

 

Questão

Que outras obras de arte contemporâneas (na literatura, cinema, teatro, música, artes plásticas…) investem de modo muito inventivo na força crítica da cultura?

 

Ampliação do debate

A partir da leitura da entrevista com o escritor angolano Gonçalo Tavares – “O tempo é formador da cultura” (clique aqui para ler)  –, é possível pensar em outros temas ligados à relação entre cultura, pensamento crítico e experiência do tempo.

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Matar ou Morrer?

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foto: Divulgação

foto: Divulgação

 

Christian Ingo Lenz Dunker

Matar ou morrer (High noon) é um faroeste “psicológico” de 1952, dirigido por Fred Zinnemann, com Gary Cooper no papel do xerife Will Kane. Ao saber que uma gangue de bandidos que ele havia prendido retornará à cidade para matá-lo, Kane foge com sua esposa. Mas algo indiscernível detém seu gesto e ele retorna à cidade para enfrentar seu destino. O filme acontece em tempo real, com várias intercessões do relógio, que escoa as horas antes da chegada do facínora. Nesse tempo Kane procura ajuda entre seus amigos e constata, desesperado, que o medo fala mais alto que os interesses individuais e que a necessidade de proteger a quem se ama torna todos, compreensivelmente, covardes. Nesse ponto de desamparo ele enfrenta, sozinho, a turba de bandidos.

O novo livro de Vladimir Safatle, O circuito dos afetos, bem poderia ser lido como uma “refilmagem” desse western clássico. Ele começa com a desativação de nosso consenso político, dominante no Brasil de hoje, de que o medo deve ser nosso afeto político hegemônico. Contudo, para além de matar ou morrer, do ódio e do amor, da angústia e da fraternidade, das paixões alegres e tristes, reside este afeto esquecido, ainda que fundamental em Freud, chamado desamparo (Hilflosigkeit). Trata-se nada menos do que redefinir a política a partir dessa afetação de nossos corpos e de superar a parceria covarde e mórbida da política hobbesiana entre medo e esperança.

“A política é, em sua determinação essencial, um modo de produção de um circuito de afetos, da mesma forma como a clínica, em especial em sua matriz freudiana, procura ser um mecanismo de desativação de modos de afecção que sustentam a perpetuação de configurações determinadas de vínculos sociais”, afirma Safatle. Viver sem esperança, como queria Lacan, é construir corpos políticos que ultrapassem a demanda de amparo. Sujeitos que não tenham medo de perder o que já está perdido desde sempre. O que há para perder são nossos predicados, nossos adjetivos identitários, nosso amor-de-si, que nos determinam como “alguém”. Desamparo é poder viver sem ter que ser alguém. É resistir a consagrar sua existência e ser determinado apenas como um indivíduo proprietário de conquistas, traços e adereços de identidade. Desamparado é aquele que vive sua vida como uma errância, assumindo sua indeterminação, entre negatividade e infinitude, despossuído de si mesmo, mais além da espera do trauma e da repetição do trauma. O ponto de partida de Safatle assimila uma intuição clínica fundamental: a cura da angústia e a travessia do mal-estar passam pela transformação da relação com o tempo.

Em Matar ou morrer, a tensão e o suspense são dados pela passagem impiedosa do tempo. Os bandidos estão chegando e não há gente disposta a ajudar. O ponto de torção acontece quando nos deparamos com o tempo bífido: finito e infinito. Ele envolve tanto o encontro marcado com a morte quanto o amor como repetição indefinida. Para entender o pensamento de Safatle é preciso ter em mente o estruturalismo francês assim como a teoria crítica alemã. Se o primeiro é marcado pela permanência da estrutura antropológica, o segundo concentra-se na dialética do tempo histórico. Entre ambos, Vladimir reteve não só a reposta de Lévi-Strauss a Braudel (as estruturas mudam, mas muito lentamente) mas também a resposta de Adorno a Celan (é possível poesia após Auschwitz, mas ela ainda está indeterminada). Entende-se assim o primeiro retorno inusitado do texto: contrapor a antropologia hobbesiana de Totem e tabu à utopia histórica de O homem Moisés e a religião monoteísta. Sem isso não saímos, nem na clínica, nem na política, da estratégia que cria medo para vender segurança (o poder que melancoliza) e só conseguimos pensar o poder como disputa pela soberania ou como nostalgia do pai. Sem isso terminaremos na psicologização de nossas demandas endereçadas a um Estado terapeuta.

Aqui se encontra uma elegante crítica da teoria de Lefort de que a economia do poder deveria prescrever uma espécie de manutenção permanente do vazio da função em relação ao conteúdo de quem a ocupa. Essa ideia de que as funções vazias são “encarnadas” por figurantes concretos, fulcro da democracia representativa, confia demais na tese de que o poder legítimo é poder desencarnado, é o poder sem corpo, consequentemente sem afetos. Essa teoria de que a democracia é o regime de separação e antagonismo permanente entre o lugar simbólico (vazio) e o real (encarnado ou pseudo-encarnado) é sintomática, pois isola e desqualifica os afetos e o corpo na política. Postular que o lugar do poder deve permanecer vazio (Lefort), que ele deve ser ocupado por um significante vazio (Laclau), ou que devemos passar por uma espécie de purificação política dos afetos (Kelsen), ignora a força transformativa do desamparo pela qual “Sujeitos políticos não constituem um povo, esta será a última lição de Freud. Eles desconstituem o povo como categoria política, sem para isso cair na ilusão de uma sociedade como mera associação de indivíduos”, como afirma o autor. Safatle cria uma curiosa proximidade entre Hobbes e Spinoza, como pensadores que esvaziaram o tempo, que perpetuaram o medo para justificar a soberania e que se uniram em torno de um pensamento que só consegue pensar a contingência como predicação, ou seja, como causalidade incapaz de absorver sua própria história. Ora, dessa maneira ambos excluem, cada qual a seu modo, a possibilidade da transformação radical, da revolução, como mudança impredicável. Ou seja, ambos fracassam pela limitação imposta por suas concepções de tempo. Contudo, como afirma Marcus Coelen em seu posfácio, não se trata nem de uma apropriação empírica, nem de uma teoria fraca sobre a relação entre psicanálise e política (por exemplo, como se vê na psicologia social das identificações e dos grupos), mas de uma teoria forte que liga psicanálise e política constitutivamente, por meio dos afetos e das patologias sociais.

O segundo movimento do livro é uma espécie de recenseamento crítico sobre o estatuto do corpo na contemporaneidade. De fonte de insegurança ontológica ele passa, pelas mãos do neoliberalismo, à condição de superfície de reconfiguração de identidades e disto para o corpo sexualmente ambivalente. Retornando ao estilo de análise crítica da mídia e da propaganda, que o leitor encontrará também em Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Vladimir faz uma espécie de fenomenologia da possessão dos corpos pelo capitalismo imaterial e suas marcas. Isso prepara o terreno para conectar o papel do corpo na esfera do consumo com a nova incidência do corpo e dos afetos no trabalho e na produção. Aqui se encontrará também esse traço metodológico constante nas pesquisas do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip) que Vladimir coordena e que investiga a transposição de modalidades preferenciais de sofrimento, como a depressão ou a personalidade borderline, em sua relação com modalidades prevalentes e compulsórias de laço social e das configurações temporais do capitalismo.

Ainda que flexível e identitariamente maleável, ainda que prazeroso em sua nova relação com o trabalho, o corpo e seus afetos tornam-se cada vez mais um subterfúgio para negar a força transformadora da contingência e da anomalia. A recusa do desamparo, como experiência do corpo, transformada em dominação e nova razão de identidade, está na raiz da gestão neoliberal do sofrimento. A transformação do estatuto social do corpo no consumo é sincrônica à emergência do neoliberalismo como gestão do sofrimento no trabalho (como produção do impróprio). De certa maneira essa parte dá continuidade às teses de Grande Hotel Abismo (WMF Martins Fontes, 2012) em torno de uma antropologia do inumano, assim como o reposicionamento do desamparo é a figura esquecida de seu primeiro livro sobre A paixão do negativo (Editora Unesp, 2006).

A terceira parte do livro é o que se pode chamar de “ajuste de contas”. Nela, nosso Gary Cooper goiano enfrenta de forma contundente críticas e oposições acumuladas durante os últimos anos. Se uma verdadeira obra é aquela capaz de criar e de sobreviver aos seus próprios problemas, temos aqui um verdadeiro autor. Primeiro, ele ajusta as contas com Axel Honneth, este aliado metodológico, continuador da Escola de Frankfurt, que lançou um primeiro programa de renovação da teoria do reconhecimento. Acusando nele um excesso de confiança na intersubjetividade originária, Vladimir efetua a tão esperada manobra de extração da psicanálise “harmônica” de Winnicott e de intrusão da psicanálise “negativa” de Lacan. Síntese da peleja sobre Honneth:

“Para alguém que julga que tudo começou bem no colo da mãe não terá dificuldade em acreditar que tudo terminará ainda melhor em um jogo de futebol.” Nada como arrumar novos inimigos.

Depois vem um dos esclarecimentos mais aguardados sobre seu pensamento, a saber, por que sua teoria do reconhecimento e, consequentemente, renovação lacaniana do sujeito político e clínico, não é uma versão edulcorada de Hegel, Mead ou Marx? A resposta é tão simples quanto astuciosa. Trata-se de um conceito antipredicativo de reconhecimento. Um reconhecimento que não é apenas ato cognitivo, mas experiência dialética do desejo entre determinação e indeterminação; que não é elegia do eu, mas crítica de nosso cárcere involuntário no individualismo; que não é reificação de traços de identidade, mas aposta na força produtiva da contingência desinstitucionalizada. Três tiros à queima-roupa, – Real, Simbólico e Imaginário – bem no peito do lacanismo raso que só consegue pensar o reconhecimento como razão narcísico-imaginária.

Kant, a teologia cristã e o amor romântico serão os três vilões que surgem depois disso. Contra eles, um dos momentos mais espetaculares e imprevisíveis do livro: a recuperação da categoria marxista de proletariado. Como sinônimo dos despossuídos, como índice dos desinstitucionalizados, como força universal de transformação política, movida pela antipredicação, tal classe é reinventada para além de sua dicotomia tradicional com a burguesia e para além de sua redução ao trabalhador industrial. Surpreende ainda a elucidação, nessa parte do texto, de uma de suas teses mais controversas, apresentada em A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas, 2012), acerca da importância da indiferença como condição de autonomia da política diante da cultura e da economia. Aclara-se aqui por que as lutas culturais, expressas em movimentos como o feminismo, os grupos que pleiteiam a ampliação de direitos dos gêneros ou a mobilização contra a opressão de negros e outras minorias étnicas, são um momento estratégico do esforço de reinvenção da política, mas não um fim em si mesmo. Também a mobilização em torno do progresso na distribuição de renda e na equidade de acesso a bens simbólicos como educação e saúde não deveriam subsumir todo nosso horizonte político. Mais além dessas duas estratégias necessárias e imprescindíveis está a dissolução do nosso modo de experimentar a propriedade, a começar pela propriedade de nossos corpos. Ou seja, se trata de uma política para além do pressuposto de identidade:
“Ela [a indeterminação] libera os conflitos de reconhecimento do terreno das diferenças culturais, com seus processos de construção e afirmação de identidades enquanto atributos da pessoa, nos abrindo a possibilidade de fundar ontologicamente uma zona de reconhecimento propriamente política”. É aqui que a tese sobre o desamparo, como experiência produtiva de indeterminação, o grau zero de nossos afetos e razão elementar de nosso mal-estar, rende os melhores frutos. É aqui que Vladimir não se coloca apenas como alguém capaz de conjurar velhos monstros do passado como Hegel e Marx, Freud e Adorno ou Bataille e Lacan, mas de pensar nossa época e sua profunda insatisfação com as limitações da forma partido, ou seja, tanto da política institucionalizada nas democracias liberais quanto de seus suplementos multiculturalistas. Quem está esperando mais um lance no duelo entre esquerda e direita será surpreendido com o convite para uma nova geografia.
O universalismo negativo do pensamento de Safatle é uma espécie de bala de prata contra o vampirismo que tem se aproveitado da renovação do pensamento de esquerda para manter viva a caça aos comunistas, como inimigos necessários para uma política do ódio. Esse universalismo aparece na recuperação crítica da noção de vida e de anomalia, retomadas do epistemólogo da Biologia, Georges Canguilhem. Esse universalismo aparece ainda em sua crítica da pequena política baseada na confrontação de unidades particulares de gozo. Ele prospera também nessa versão não liberal do corpo e dos afetos como fonte primeira e última de nossa relação com a liberdade. Liberdade que será encontrada e rediviva naquela figura que imaginariamente melhor representa sua negação, a saber, o desamparo. Como o herói bíblico de Jó; como Kierkegaard, o amante às voltas com a repetição; como o Lumpenproleteriat de Marx, como o sujeito lacaniano sem predicados, a figura teórica da despossessão atravessa o livro. Ela nos provoca e nos ensina que é preciso inventar uma nova modalidade de ter, de possuir, de se apropriar das coisas, das ideias, das pessoas e de si mesmo. Ali onde nosso judicialismo patológico só consegue ver contratos e indivíduos, ali onde há um infinito de responsabilidades por vir. Só ao final entende-se por que o livro abre com Kafka, de O processo e os seus juízes leitores de pornografia barata. É porque Safatle quer libertar a política de sua condenação a ser mera reinvindicação de ampliação de direitos, por meio de grupos organizados, dirigidos por interesses e afetos comuns.

Circuito-dos-afetosMatar ou morrer não é apenas um filme freudiano, como foi recebido em sua época, é também um filme trágico sobre a relação com o tempo. O circuito dos afetos, na melhor tradição žižekiana é uma desmontagem dessa escolha fantasmática, na qual nos aprisionamos clínica e politicamente. Muito além de matar ou morrer, que é a falsa escolha hobbesiana que nos acossa presentemente, com sua moral da sobrevivência, com sua pequenez jurídica da vida e com seu circuito míope de afetos como ódio, medo e inveja, o livro de Vladimir Safatle é uma cura para nossa reinante falta de imaginação política… e clínica.  

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CULT participa do Fórum das Letras de Ouro Preto

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forumdasletras
No dia 7 de novembro, sábado, às 17h, a revista CULT participa do Fórum das Letras de Ouro Preto com a mesa de discussão “A política dos afetos”, com as presenças do filósofo Vladimir Safatle, do psicanalista Christian Dunker e de Welington Andrade, editor da publicação que mediará a conversa.

 

“Gostaria de mostrar a importância das metáforas corporais no interior da filosofia política”, conta Safatle, que acaba de lançar o livro de ensaios O circuito dos afetos (Cosac Naify), cujo tema pretende explorar durante a discussão. “Além disso, desejo apontar que há uma perspectiva renovada de compreensão dos fatos políticos quando compreendemos a política como uma questão de circulação de afetos, e não apenas sobre modelos de circulação de bens e riquezas”.

 

Por sua vez, Dunker, que resenhou o livro de Safatle na edição 205 da CULT (leia aqui), pretende discutir política pela ótica da psicanálise. “Penso em falar do debate e da conversa cruzada que o texto de Safatle faz com meu último livro, Mal estar, sofrimento e sintoma (Boitempo), particularmente no que toca ao papel das patologias do social no contexto dos circuitos dos afetos e à definição neoliberal das modalidades de sofrimento”.

 

Aberto na noite de 4 de novembro, o Fórum das Letras de Ouro Preto tem como tema  “Diversidade Cultural e Liberdade de Expressão” e reúne, até domingo (8), mais de 80 autores nacionais e estrangeiros em debates, workshops e intervenções artísticas. Além disso, o evento, que é totalmente gratuito, também conta com uma exposição em homenagem ao escritor alagoano Graciliano Ramos.

 

Confira a programação completa em www.forumdasletras.ufop.br.

 

Mesa Revista CULT: A Política dos Afetos – Fórum das Letras de Ouro Preto
Quando: 
7 de novembro de 2015, às 17h
Onde: Cine Vila Rica (Praça Reinaldo Alves de Brito, 47 – Ouro Preto (MG)
Quanto: gratuito

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Sobre ovelhas e condomínios

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A mesa "A política dos afetos". Da esquerda para a direita: Welington Andrade, Vladimir Safatle e Christian Dunker

A mesa da revista CULT, “A política dos afetos”. Da esquerda para a direita: Welington Andrade, Vladimir Safatle e Christian Dunker


Helder Ferreira

O jornalismo teve grande destaque no penúltimo dia do Fórum das Letras de Ouro Preto, que em sua programação principal dedicou três mesas à área. No início da tarde de sábado (7), os jornalistas Audálio Dantas e Miriam Leitão compartilharam experiências de carreira e falaram sobre trabalhos seus que venceram o prêmio Jabuti; às 15h30, quando a temperatura chegava aos 30 graus – algo pouco usual para a cidade mineira, conhecida por climas mais amenos –, a cartunista Laerte foi responsável por lotar o histórico Cine Vila Rica durante sua mesa com o diretor de redação da revista Piauí, Fernando Barros e Silva; e, às 19h, foi a vez do jornalista Paulo Markun se juntar ao colega de profissão norte-americano John Dinges para discutir “Memória, Anistia e Silêncio”.

No entanto, no meio dessa programação, mais especificamente às 17h, insinuou-se a filosofia. E a psicanálise. Diante de um auditório composto por cerca de 150 pessoas, o filósofo Vladimir Safatle e o psicanalista Christian Dunker, mediados pelo editor da revista CULT Welington Andrade, dialogaram a respeito de seus mais recentes livros durante a mesa de debate “A política dos afetos”.

Colegas no Laboratório INTERUNIDADES de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo, eles buscaram explorar algumas intersecções entre suas pesquisas.

Dunker, que no primeiro semestre lançou o livro Mal estar, sofrimento e sintoma (Boitempo), falou das “psicopatologias do Brasil entre muros”. Em sua análise, a sociedade brasileira contemporânea se estruturou nas últimas décadas tendo por base uma lógica de condomínio, de segregação. Este modo de vida, segundo ele, é baseado em dois afetos: o medo – isto é, a necessidade de se proteger do Outro, do perigo desconhecido no território além-muros – e a inveja – no caso, ser invejado por dispor de uma vida “controlável”. O estilo de vida ao modo de um”comercial de margarina”, no entanto, parece pouco saudável: depressão, pânico e uma cultura de excessos rondam os “condôminos”.  “A pessoa se apega ao orgulho de ser invejada, mas não é feliz. Sente uma sensação de esvaziamento, como se algo estivesse faltando em sua vida”, comenta o psicanalista.

É pelo fato de a vida social ser constituída por fantasias, desejos e afetos sociais que Safatle sustenta a tese de que a política não é apenas um problema de produção, circulação e consumo de bens, mas, sobretudo, um problema de circulação de afetos. “A maneira como sinto, percebo e vejo define o que é político. É uma questão de percepção”, explica o filósofo. Os afetos que dominam a vida social, segundo o autor do recém-publicado O circuito dos afetos (Cosac Naify), são o medo e a esperança, e é a partir deles que o poder do Estado se organiza. “O poder do estado é, ao mesmo tempo, o bombeiro e o piromaníaco: ele protege e lembra o tempo todo como seria se ele nao fizesse o que faz. Ele gere a insegurança”. Para Safatle, o único afeto com poder transformador é o desamparo. “Se eu demando amparo, faço isso porque espero que a pessoa consiga me amparar, assim, eu transfiro poder, desvirtuando a política – que se baseia na destituição de poder”, teoriza ele, acrescentando que afirmar o desamparo significa perceber a falta (ou vazio) como uma condição ontológica  inscrita na própria estrutura da subjetividade. “Isso pode até mesmo se transformar em coragem, posso deixar de procurar amparo. Para isso, é necessário a contingência e a despossessão”.

Todavia, enquanto isso não ocorre, continuamos vivendo dentro da lógica de condomínio ou, como Safatle apontou ao fim do painel, numa espécie de arca teológica política em que autoridade é exercida de modo pastoral. “O pastor sempre conhece as ovelhas, cuida delas e permite que elas se movam – sempre pensando no perigo que as espreita. Esse tipo de autoridade baseada no amparo se dá in absentia”. Somos, então, todos ovelhas vivendo em condomínios.

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Privado: Nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre

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por Peter Pál Pelbart

É um dos grandes méritos desse livro conseguir formular com clareza e coragem que o tabuleiro psicopolítico sobre o qual ainda jogamos nossas peças, com seus atores, papéis, movimentos, estratégias, esgotou-se, pois repousa sobre o medo esse afeto que funda nossa sociabilidade, bloqueia nossa capacidade de ser afetado, gera o temor da desagregação, e fatalmente engendra um investimento compensatório em figuras de autoridade, segurança, proteção, identidade. A “angústia da perda do amor” engendra as subserviências mais abjetas. É uma “mutação dos afetos” que hoje se requer. Portanto, uma capacidade de ser afetado, diz o autor espinosanamente, única via para construir um outro plano para o pensamento e a ação. Mas não é Espinosa, o filósofo, que mais inspira esse livro, e sim Freud. Foi ele quem pensou o desamparo de maneira original. Longe da mera dependência devida à prematuração do bebê ao nascer, longe da incompletude funcional e insuficiência motora, o desamparo tal como aqui é concebido alude a uma assimetria inaugural, onde uma experiência de indeterminação na relação com o outro, próxima de um excesso, ali onde, como no trauma, diante de uma intensidade transbordante, as reações disponíveis já não bastam, advém uma espécie de impotência, de suspensão. É nessa região, nesse estado, que os possíveis já não se atualizam e outra coisa, antes não vivida e não experimentada, pode acontecer. Essa aposta na positividade da insegurança existencial ou ontológica, ali onde algo nos vem de fora ou do outro, e é incontrolável, não desemboca na autoculpabilização, na melancolização, na sujeição infantilizada, como no fascismo que Adorno analisou ou no fascismo virtual que habita nossas democracias, e que um atentado é suficiente para pôr em marcha, como se viu recentemente. Trata-se, ao contrário, a partir dessa não coincidência consigo mesmo, de dissolver inclusive a ideia unitária de povo, de identidade coletiva, fundada num território, numa autoridade ou numa “narrativa fundacionista ou redentora”, sempre cúmplice do culto do Estado. Assim, o desamparo como exposição à alteridade implica uma afectibilidade, e por conseguinte, uma outra lógica do liame social – um outro circuito dos afetos.

Se o desamparo, na esfera social, econômica e até nacional costuma ser fonte de medo e angústia, que dispara as fantasias de segurança, autoridade, justificando em última análise toda uma biopolítica securitária, mas também identitária, como se viu recentemente na reação francesa aos atentados de Paris, o pulo do gato do livro é fazer do desamparo, deslocado de sua conotação sociológica e resgatada ao campo psicanalítico, a afirmação da contingência e da errância, acompanhando os efeitos daí advindos na esfera de uma teoria do poder. Nesse salto político-filosófico, o desamparo deixa de ser algo contra o qual cabe lutar, para tornar-se uma dimensão que se deve assumir, o que permitiria que o embate na esfera política não mais se assentasse na autovitimização e na reivindicação infindável de reconhecimento e reparação, como é o caso em muitos contextos, para dar lugar a outra coisa.

Mas o que implica o desamparo, no sentido em que o entende o autor? Na experiência de despossessão, de indeterminação, de dissolução da identidade; em outros termos, é aquela experiência através da qual o sujeito, individual ou coletivo, se libera do que antes o qualificava, o unificava, o representava, o tipificava. O autor designa isso que ele postula o horizonte antipredicativo de reconhecimento, onde o reconhecimento não passa pelo predicado de quem está em cena. Assim, recusa-se tanto a “afirmação da identidade”, tão em voga, quanto o “reconhecimento das diferenças”, igualmente predominante. É óbvio que ambas se equivalem: a afirmação das identidades e o reconhecimento das diferenças – Deleuze já fustigava o reino das diferenças constituídas, que não passam de identidades contíguas, “conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas”. Num espírito deleuziano, eu diria que Vladimir reivindica uma zona de indiscernibilidade, de indiferença, onde o homem se livra de suas “propriedades”, de suas “particularidades” – é o que a filosofia política contemporânea mais ousada não cessa de reivindicar, a singularidade qualquer.

Tudo começa num “corpo capaz de produzir afetos que nos despedaçam” – corpo turbulento, des-orgânico, acrescenta ele, que requer um tempo seu – devir sem tempo, temporalidades múltiplas, heterogêneas, incomensuráveis, uma indeterminação espectral, acontecimentos impredicáveis inaugurando processos singulares. Como dirá o autor: “Quando abrirmos as portas do tempo com suas pulsações descontroladas e anômalas, suas múltiplas formas de presença e existência, então conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível”.

Nada disso é um libelo metafísico ou um psicologismo aplicado à política, mas uma intervenção na mais viva concretude de um contexto neoliberal e biopolítico onde o biopoder não se exerce apenas sobre corpos e mentes, gestão da população, da vida e da saúde, do tempo e de sua rentabilização, porém mobiliza e expropria a libido, calibra o medo e a esperança em meio à desregulação e a flexibilização generalizadas, introduz a lógica empresarial na gestão de si, cobra o gozo incessante, ou seja, modula as formas de vida numa intensificação infinita porém contábil, no que o autor chama, inspirado em Bataille, porém numa chave crítica, de “subjetivação do excesso”. É nosso indivíduo neoliberal, sedento de reconhecimento, mas espoliado do estranhamento – é esse estado de coisas que cabe analisar e desmontar, mesmo no campo do trabalho, onde já não se trata da produção do próprio dirigido a um outro, porém do impróprio, do sem propriedade, do sem destino, do sem utilidade, do sem valor de troca – a vida do gênero, o comum inapropriável, diria Agamben, entrecruzado com um Bataille revisitado, o da soberania como desperdício. É o esgotamento de uma certa ética protestante do trabalho, mas também de certa lógica da finalidade e da finalização. Como poderíamos discordar disso tudo? É tudo tão forte e bonito, tão articulado, tão pertinente, tão urgente!

Mas não pense o leitor que isso se desdobra com naturalidade. Os golpes que esse livro teve que aplicar para chegar a tal resultado são tão surpreendentes quanto seu resultado. Virar Hegel do avesso para mostrar que a dialética está muito mais próxima da ruptura, da descontinuidade, do esquecimento do que da teleologia que seus críticos lhe imputaram – inclusive mais próxima da diferença, pensada radicalmente. Lembrar que dar o que não se tem, em Lacan, nada tem a ver com falta ou carência, mas com desmesura, indiferença à medida, circulação do incomensurável. A irritação com as interpretações simplistas de Hegel ou Lacan ou Adorno, os coices que o livro distribui a torto e a direito são saborosos. Laruelle notou que o Negativo, predominante no século 19, foi substituído pela Diferença – paixão da Diferença. Mas na contracorrente, é como se Vladimir reintroduzisse a urgência da negatividade. Um leitor de Deleuze como eu poderia se sentir visado ou rechaçar alusões várias, claro, se fosse torpe e não sentisse que se trata de uma negatividade transmutada, para além de Hegel e mesmo de Adorno. Também poderia sentir-se espantado com a quantidade de Badiou espalhada pelo livro, ou de um Zizek levado tão a sério, ou mesmo de um Axel Honneth a quem é dedicado um capítulo inteiro. Às vezes tem-se a impressão que depois que alguns gigantes da filosofia faleceram, os anões criaram coragem para subir ao palco e fazer grande estardalhaço, desafiando e zombando dos gigantes desaparecidos. Mas isso tudo já não diz respeito ao livro, e sim ao circo filosófico contemporâneo. Felizmente, o livro dista mil léguas disso tudo.

Pois ele não se satisfaz com o que se diz sobre os autores supostamente ultrapassados, que assume o risco de virar do avesso as interpretações consagradas, que ousa sustentar uma perspectiva contraintuitiva a respeito de tudo, que não trabalha por filiação – tudo isso é salutar. E quando segue as implicações concretas de suas apostas teóricas, não tem medo de ir até o fim, num frutífero diálogo com Butler ou Agamben. Por exemplo, que a inscrição jurídica dos direitos das minorias, sem dúvida necessária num primeiro momento de afirmação identitária, pode implicar ulteriormente um controle biopolítico, no interior de uma gramática que incorpora as predicações autoproclamadas – catalogando as sexualidades, por exemplo, é preciso relembrá-lo sempre, mesmo que tais minorias se sintam com isso ofendidas. Daí a reivindicação de Agamben, tão aguda e necessária quanto difícil de ser imaginada, por uma vida para além do direito, ou o privilégio que atribui à destituição ou à desinstitucionalização, na contramão de tantas correntes, também progressistas.

Mais surpreendente, porém, é que ao lado dessa teorização tão radical, se enuncia a intransigente defesa da regulação econômica, para escândalo de um pós-modernismo que finge que o social é apenas uma miragem, ou que teríamos entrado numa era pós-política. Sim, a regulação econômica, sem que ela se faça acompanhar de uma regulação das relações sociais, inclusive naquilo que tange às relações familiares ou amorosas. Pois se a política é indissociável dos afetos, é justamente na medida em que eles vazam os contornos do que deve ser institucionalizado, codificado. Daí a liberdade e mesmo a necessidade de se falar até do amor, não como ágape, não como filia, mas outra coisa. Vladimir tem a ousadia de tratar disso com a fineza que raramente se encontra num tratado político: não se trata de uma relação intersubjetiva, não há dois indivíduos, nem fusão, nem contrato, nem reconhecimento de “propriedades”, nem “fetichismo da pessoa”, nem sistema de trocas, mas circulação de dons que quebram a reciprocidade, na gratuidade, numa destituição subjetiva que é impensável sem o corpo. Vladimir diz, com muita precisão: “Não será com os mesmos corpos construídos por afetos que até agora sedimentaram nossa subserviência que seremos capazes de criar realidades políticas impensadas. Mais do que novas ideias […], precisamos de outro corpo […]. Pois nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre”.

Como não ouvir aí um belo eco de Artaud? Mas Vladimir é mais sóbrio, e cita seu livro anterior, Grande Hotel Abismo: “Que afetos podem levar indivíduos a se implicarem com o que não tem a forma da pessoa, do Eu e nem a forma do comum, do que fundaria uma partilha do comum, mas com o que tem a forma do impróprio, do que funda uma partilha baseada no que não se configura nunca como minha propriedade?”. Ou seja, prossegue ele, que afetos criam sujeitos? Que afetos impulsionam os indivíduos, que acreditamos um dia dever ser, à dilatação produzida pela implicação com a desmesura que funda todo sujeito? Este é o problema central deste livro.

Desmesura como fundamento – é Bataille? É Heidegger? É um Nietzsche oculto e quase não citado? Ou é um Lacan revisitado, livrado da ortodoxia de seus seguidores? Em todo caso, ao descartar as noções de beatitude, de contentamento ou de felicidade, o autor explica que “para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se”. Não é o elogio da frustração, mas de se relacionar “àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar causar por aquilo que despossui o Outro. No desamparo, deixo-me afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar no Outro, algo que desampara o Outro”. Heteronomia sem sujeição. Ou, dito de outro modo, e mais belamente: “Amar alguém é amar suas linhas de fuga”.

Um leitor sensível ficará atento à ressonância deleuziana dessa fórmula, apesar de sua matriz lacaniana. Isso acontece amiúde, e não se deve a uma operação de despiste, mas a um pluralismo presente no Vladimir, que às vezes suas referências mais frequentes encobrem. Por isso, aconteceu-me coisa muito diferente do que concordar ou discordar. Eu me diverti com os golpes e contragolpes, talvez porque menos preso à questão da identidade dos autores visados ou celebrados do que à trajetória empreendida. E ao mesmo tempo em que acompanhava a problemática, o diagnóstico, a aposta teórica ou prática desdobrada, ocorreu-me reescrever mentalmente o mesmo livro a partir das minhas fontes mais familiares, sobretudo Nietzsche, Blanchot, Simondon, Deleuze-Guattari. Em outras palavras: a morte de Deus ou do homem, o Fora e o Desastre, a Individuação, os Agenciamentos de Desejo. Não vou cometer a indelicadeza de insistir nisso, é apenas uma confissão entre amigos.

Eu diria que é de uma política da existência que trata o livro do Vladimir. Ao partir do que ele chama de espoliação psíquica do estranhamento, estamos embocados numa posição do problema das mais agudas, sulfurosas e promissoras. Pois ao reintroduzir o estranhamento no pensamento político, tão repleto de polaridades caducas, faz transbordar nossa racionalidade calculante em direções indeterminadas e não prescritivas – já que a vida, retomada, como diz o autor, em sua voltagem especulativa, está próxima do que Foucault enxergou em seu último texto sobre Canguilhem: erro, errância. Vida errática, não viril, não plena, sem fundamento, excentrada, abrindo a via para uma biopolítica vitalista mais hesitante do que tonitruante, que desbarata todo fundamentalismo, totalização, finalização. No contexto atual, saturado de catastrofismo e salvacionismo, esse livro reintroduz a contingência, a suspensão, a deiscência, a disjunção, mesmo a queda, contrarrestando a performatividade do Capital que se apossa do pensamento e de sua potência. Assim, ele nos ajuda a respirar de novo, a pensar o novo.

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Privado: A linguagem como enterro

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por Vladimir Safatle

De fato, talvez tudo tenha começado diante de um corpo morto. Há de se imaginar este momento: pela primeira vez, alguém não era indiferente diante de um corpo morto. Uma indiferença que, no entanto, era de outra ordem do que a simples tristeza. Diante do corpo inerte de quem até então era objeto de afeto, alguém quis, pela primeira vez, lutar contra o tempo e seu cortejo de perdas. Aparecia assim uma tristeza que, pela primeira vez, portava algo mais do que tristeza. Ela portava a afirmação soberana da memória.

Negar a perda através da memória: não bastava que isto fosse uma operação defensiva. Ela deveria ser a realização de um destino. Pois defender-se da perda através da memória é como permanecer sempre no mesmo lugar, permanecer lá, no descampado diante do corpo morto. Mas afirmar que a memória realiza um destino é algo totalmente diferente. É como afirmar que as pessoas existem para habitar a memória de outros, para fazer dos outros o palco de uma existência que não é apenas a presença de um indivíduo, mas o emaranhado bizarro de vários outros. Um pouco como o conselho que a jovem Eugénie recebe em A filosofia na alcova, de Sade: “Se você quiser ser imortal, transe com o maior número possível de pessoas, pois estes nunca te esquecerão”.  Há de se admirar da ironia de um libertino que, no fundo, quer realizar o desejo religioso de redenção da carne, mas através da carne. Ironia de um libertino que, no fundo, quer transfigurar o ato de fazer sexo em maneira de se entregar à memória do outro. Há de se agradecer a Sade por isso.

Mas, se a memória é esta realização de um destino, então devemos dizer que tal destino começou a se realizar quando, pela primeira vez, alguém sentiu a angústia diante do corpo morto em decomposição, diante da potência desfiguradora do tempo. Pois havia uma imagem que não deveria ser apagada. Ela deveria permanecer. Para tanto, o tempo que desfigura deveria ser remetido à invisibilidade, sumir dos olhos de todos. Como se agora fosse possível separar a impermeabilidade da imagem e a porosidade dos corpos. Foi assim que talvez, pela primeira vez, alguém teve a ideia de enterrar um morto. Deveríamos agradecer também à potência criadora da angústia por isso.

Quando os mortos começaram a ser enterrados, a memória pôde aparecer como um peculiar luto criador. Não o luto como fixação que me leva a internalizar o objeto perdido, como quem internaliza uma sombra sobre o Eu. Mas o luto como a primeira condição da linguagem. Sem luto, não se fala, pois não se eleva as coisas à condição de signos. Assim, se quisermos continuar esta antiga tradição filosófica que especula sobre a gênese da linguagem, poderíamos dizer que a linguagem nasceu quando os mortos começaram a ser enterrados.

Um dia, Alexandre Kojève (no fundo, alguém melhor do que muitos de seus críticos) disse que “a palavra é o assassinato da coisa”. Maneira de lembrar como falar realiza melhor sua essência quando a fala se coloca como o ato de enterrar coisas, de deixar a presença das coisas morrerem para que elas habitem um universo no qual nada nunca passa completamente. A linguagem sempre realizará seu destino quando ela lembrar como sua essência está no enterro, e como o enterro é o ato maior de revolta contra a surdez devoradora do tempo.

Alguns podem achar este pathos da linguagem e da morte uma espécie de Blanchot piorado. Estes tem um pedaço de minha consideração. Afinal, sempre há alguém a achar que os momentos de espanto do outro são, no mais das vezes, expressões de um maneirismo que perdeu sua vergonha. Mas deixar de escrever este artigo seria levá-los mais a sério do que merecem. Além do que, a verdade nunca economizou maneirismos.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

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Pratos quebrados

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Vladimir Safatle

I.

“Um homem não se recupera desses solavancos, ele se torna uma pessoa diferente e eventualmente a nova pessoa encontra novas preocupações.” Foi isso o que Scott Fitzgerald tinha a dizer depois de seu colapso nervoso. Ele se via como um prato quebrado, “o tipo que nos perguntamos se vale a pena conservar”. Prato que nunca mais será usado para visitas, mas que servirá para guardar biscoitos tarde da noite.

De fato, há certos momentos no interior da vida de um sujeito nos quais algo quebra, que não será mais colado. Olhando para trás, é estranho ter a sensação de que andávamos em direção a esse ponto de ruptura, como se fosse impossível evitá-lo caso quiséssemos continuar avançando. Como se houvesse passagens que só poderiam ser vivenciadas como quebra. Talvez isso ocorra porque somos feitos de forma tal que precisamos nos afastar de certas experiências, de certos modos de gozo, para podermos funcionar. Dessa forma, conseguiremos fabricar um prato com nossas vidas, um prato pequeno. A mulher que precisa se afastar da maternidade, o homem que precisa se afastar de uma paixão na qual se misturam coisas que deveriam estar separadas: todos esses são casos de pratos fabricados para não passarem de certo tamanho.

No entanto, somos às vezes pegos por situações nas quais acabamos por nos confrontar com aquilo que nos horroriza e fascina. Se quisermos continuar, sabemos que, em dado momento, o prato se quebrará, que ele nunca será recuperado, que talvez não funcionará “melhor”, até porque ele viverá com a consciência clara de que há vários pontos da superfície nos quais sua vulnerabilidade ficará visível. Como disse Fitzgerald, um homem não se recupera desses solavancos. Algo desse sofrimento fica inscrito para sempre.

Mas ele também poderá descobrir que, mesmo depois da quebra, ainda é capaz de se colar, de continuar funcionando, um pouco como esses pratos que pintamos de outra forma para disfarçar as rachaduras. Se bem elaborada, tal experiência poderá levar à diminuição do medo daquilo que, um dia, fomos obrigados a excluir. Talvez aprendamos a compor com doses do excluído, já que a necessidade da exclusão não era simplesmente arbitrária, embora ela não precise ser radicalmente hipostasiada. Algo do excluído poderá ser trabalhado e integrado; algo deverá ser irremediavelmente perdido.

Um dia, descobriremos que todos os pratos da sala de jantar estão quebrados em algum ponto e que é com pratos quebrados que sempre se ofereceram jantares. Os pratos que não passam por alguma quebra são pequenos e, por isso, só servem para a sobremesa. No entanto, ninguém vai ao banquete por causa da sobremesa.

II.

Há pessoas que parecem estar sempre à espera de uma catástrofe. Quando dificuldades e necessidades de reacordos aparecem na vida, elas só podem ver nisso o prenúncio da catástrofe anunciada. Por terem, no fundo, vivido sob o signo da catástrofe iminente, elas não desenvolveram a capacidade de suportar um tempo de espera, a confiança de que podemos sempre encontrar modos de superar obstáculos. No entanto, boa parte de seus problemas vem do fato de elas esquecerem que, nem sempre, bater de frente contra um muro é a melhor maneira de atravessá-lo.

Um dia, Arnold Schoenberg disse a seu aluno John Cage: “Você compõe como quem bate a cabeça contra um muro”. “Então, quero bater minha cabeça até perfurá-lo”, respondeu Cage. A ideia pode ser boa, mas realizá-la talvez não seja a melhor coisa a fazer. Não por acaso, Cage será lembrado como alguém que tinha boas ideias, embora suas realizações nem sempre fossem realmente boas. Um muro não é algo feito para ser perfurado com a cabeça. No entanto, isso não significa que nossa cabeça seja fraca; significa que devemos aprender a saltar.

Para as pessoas que parecem estar sempre à beira de uma catástrofe, vale a pena lembrar que toda dificuldade é dificuldade de uma situação. Ela é a ausência de boa resposta para os desafios de uma situação. No entanto, somos sempre capazes de mudar de situação, de passar para o outro lado do muro. Precisamos apenas de tempo para observá-lo com calma, medir sua altura, deduzir sua espessura. Precisamos de perseverança para suportar a ideia de que serão necessárias várias tentativas, que nos machucaremos no meio do caminho. Mas a vida tem uma estranha benevolência para com aqueles que continuam tentando. Ela sabe que a capacidade de suportar fracassos é condição para mudarmos situações. Pois o fim não virá, nem a catástrofe. O que virá é uma capacidade maior para construir escadas e varas. A vida é capaz de resolver os problemas que ela coloca para si mesma.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

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Não é apenas Deus que sabe distinguir

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Vladimir Safatle

“Entre um falso e um verdadeiro gozo, quem senão Deus (Nous Theos) veria diferença?” Essa era a crítica feita por Bento Prado Jr. à crença de Herbert Marcuse na capacidade de distinguir entre bons e maus, entre verdadeiros e falsos prazeres. No entanto, Bento Prado tinha e não tinha razão.

Ele tinha razão, se acreditarmos em um princípio geral, universalmente aplicável, de distinção entre falso e verdadeiro gozo, entre hedonismo e prazer edificante. De fato, não encontraremos normatividades genéricas nesse campo. Ele não tinha razão, se lembrarmos que há uma ciência do singular no que diz respeito ao prazer. Se compreendermos o gozo como aquilo que orienta a conduta dos sujeitos em sua busca por satisfação, então deveremos admitir que todo sujeito distingue entre falso e verdadeiro gozo. Todo sujeito se apoia na capacidade que o vivente tem de escolher, selecionar e excluir para orientar sua conduta baseada na satisfação de certos desejos e da recusa de outros. Essa capacidade é singular, ela funciona com base na contingência de experiências singulares e não universalizáveis. No entanto, para o sujeito, ela é absolutamente necessária. Todo sujeito sabe que há certas experiências que, para ele, serão marcadas por um gozo muito próximo ao da morte, da dispersão extrema, da dissociação que nada constrói. Ele sabe que deverá encontrar uma forma de evitar tais experiências ou, ao menos, de enquadrar o gozo que elas prometem no interior de uma estrutura com a qual ele saberá como lidar melhor. Isso é inerente à capacidade de conservação de todo e qualquer organismo. Não tenhamos medo de dizer que isso é natural.

Crença na habilidade de distinção

A distinção entre falso e verdadeiro gozo pode ser lida como distinção entre um regime de satisfação que aumenta a capacidade de ação, a flexibilidade para suportar as contingências de nossa história, e outro que restringe tal capacidade e flexibilidade, que me impede de operar realizações. Não é apenas Deus que sabe fazer tais distinções. A vida as faz e, em um dado momento, é sinal de inteligência confiar o caráter aparentemente prosaico e trivial de considerações que acumulamos ao longo da vida. Elas são absolutamente verdadeiras, para nós. Fruto de um saber prático que não é simplesmente a internalização de coerções sociais exteriores. Em alguns momentos fundamentais, devemos confiar na habilidade que desenvolvemos para selecionar, excluir e compor, ou seja, na habilidade que desenvolvemos para distinguir entre falso e verdadeiro gozo.

Há momentos na vida em que não temos clareza da direção que devemos tomar, das ações que devemos realizar. Mas temos clareza das consequências que devemos saber evitar, de certas direções que, em hipótese alguma, devemos tomar. De fato, é errado acreditar que esse saber prático é fonte segura de orientação. Mas é igualmente errado acreditar que ele é apenas uma sucessão de equívocos. A esse respeito, Chesterton teve a sagacidade de escrever uma vez: “O homem que não consegue acreditar nos seus sentidos, e o homem que não consegue acreditar em nada além dos seus sentidos, os dois são insanos; porém, a insanidade deles não é provada por algum erro na sua argumentação, mas pelo erro evidente de sua vida. Os dois se trancaram em duas caixas, em cujo interior estão pintados o sol e as estrelas; os dois estão incapacitados de sair: um, para entrar na saúde e felicidade do céu; o outro, nem sequer para entrar na saúde e felicidade da terra”. Dificilmente, alguém seria capaz de dizer com tanta precisão que nossas evidências guardam algo de necessário para nossas formas de vida.

Tais considerações demonstram que podemos não saber como realizar, de maneira segura, o melhor. Podemos nem sequer saber o que é o melhor. Como o famoso asno de Buridan, que não sabe como escolher entre dois montes de comida à mesma distância, podemos entrar em colapso no interior de nossos sistemas de decisão. No entanto, sabemos bem o que é o pior. E todo organismo é capaz de mobilizar suas forças para evitá-lo.

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A farsa como tragédia

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Vladimir Safatle

“Vou interromper o senhor. A pergunta que tenho a lhe fazer é… O senhor tinha uma ideologia. Esta declaração é sua: ‘Tenho de fato uma ideologia. Minha avaliação é que o livre mercado competitivo é, de longe, uma maneira sem rival de organização das economias. Tentamos as regulamentações, nenhuma funcionou de maneira significativa’. É uma citação sua. O senhor teve autoridade para impedir as práticas irresponsáveis de empréstimo que levaram à crise das hipotecas subprime. O senhor foi aconselhado a agir nesse sentido por muitos outros. E agora toda a nossa economia está pagando por isso. O senhor acha que a sua ideologia o levou a tomar decisões que preferiria não ter tomado?”

Essas foram palavras do deputado norte-americano Henry Waxman pronunciadas para o então presidente do FED [Banco Central estadunidense], Alan Greenspan, quando este foi chamado ao Congresso para explicar sua irresponsabilidade diante da crise financeira de 2008.

Não deixa de ser impressionante lembrar como os choques econômicos liberais das últimas décadas foram feitos apregoando o fim das ideologias. Contra a “ilusão” de que haveria alternativas possíveis de desenvolvimento e distribuição, ouvimos durante décadas o mantra de que tais alternativas eram meras crenças ideológicas, pois o livre mercado competitivo era, de longe (talvez, só de longe), uma maneira sem rival de organização das economias.

Eis que descobrimos os cabeças pensantes do liberalismo justificarem suas ações equivocadas afirmando, de maneira descomplexada, terem uma ideologia. Bem, mas se esse for realmente o caso, cabe perguntar: como funciona tal ideologia? Esse é o objetivo do mais novo livro de Slavoj Zizek lançado no Brasil: Primeiro Como Tragédia, Depois Como Farsa.

Conhecido como um dos principais nomes da renovação teórica da esquerda mundial, Zizek é responsável por uma articulação inovadora entre psicanálise lacaniana, marxismo e análise de produções culturais do capitalismo contemporâneo.

Radicalidade

Neste livro, dois pontos merecem ser salientados. Primeiro, a compreensão acertada da existência: “da possibilidade real de que a principal vítima da crise em andamento não seja o capitalismo, mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global viável tornou-se novamente visível a todos”.

Zizek não poderia estar mais correto. A clareza da dificuldade de a ?esquerda crescer a partir da crise apenas indica como suas figuras eleitorais não têm mais capacidade de ousar em suas pautas. Suas ações não têm a radicalidade necessária para encontrar novas alternativas e mobilizar as largas camadas populares descontentes com os rumos da economia mundial.

Sobra espaço para a extrema direita xenófoba, com suas construções paranoicas e sua maneira patológica de aproveitar-se do ressentimento popular contra a burocracia liberal cosmopolita que vive de costas para a miséria.

Aqui, entra o segundo ponto a ser salientado no livro, a saber, a proposta de recuperação da “ideia do comunismo”. Não se trata de alguma defesa do retorno à experiência do socialismo real, tal como o século 20 conheceu.

No entanto, há aqui uma ideia importante a respeito de como devemos pensar a experiência revolucionária que animou os momentos decisivos do século 20. Que ela tenha fracassado e produzido o contrário do que pregava, eis algo que ninguém nega e que merece uma reflexão demorada. No entanto, é inegável sua força em produzir lutas que mostraram grande capacidade de mover a história, de engajar sujeitos no desejo de viver para além das limitações do presente.

É verdade que, atualmente, vemos um grande esforço de apagar tal desejo, isso quando não se trata de simplesmente criminalizar a história das revoluções, como se a tentativa do passado de escapar das limitações de nossas formas de vida devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como simples descrições de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás e, levando em conta os fracassos, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidade de metamorfose do humano são múltiplas. Como se não pudéssemos colocar a questão: não é necessário, muitas vezes, que uma ideia fracasse inicialmente para que possa ser recuperada em outro patamar e, enfim, realizar suas potencialidades?

Quantas vezes, por exemplo, o republicanismo precisou fracassar para se impor como horizonte fundamental de nossas formas de vida? A pergunta que Zizek quer colocar é: não seria o mesmo com a “ideia do comunismo”?

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