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Marx ataca

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Vladimir Safatle

Jacques Lacan costumava dizer que nunca se ultrapassava um grande pensador, pois a verdade era sempre nova. Talvez seja o caso de aplicar tal raciocínio a Karl Marx.

Poucos foram os autores tão acusados de nada mais ter a dizer sobre nosso tempo do que esse filósofo que um dia afirmou que a função maior do pensamento não era interpretar a realidade, mas transformá-la. Vinculou-se de bom grado o destino de suas ideias ao mesmo lugar a que foram enviados os regimes comunistas do século 20, ou seja, à lata de lixo da história.

No entanto, nestes últimos 20 anos pós-queda do Muro de Berlim não foram poucas as vezes em que o espectro de Marx pareceu retornar. Um retorno que ganhou nos últimos dois anos força inusitada.

Qualquer um que frequente livrarias pelo mundo percebe como livros sobre Marx ou de sua própria autoria voltaram às prateleiras. Embalado principalmente pelo desencanto provocado pela crise econômica de 2008, o retorno de Marx faz parte de um movimento lento que visa recolocar esquemas alternativos de reflexão sobre o desenvolvimento das sociedades modernas e seus impasses.

O caso brasileiro não poderia ser diferente, já que, entre nós, o pensamento marxista nunca desapareceu completamente – resultado da existência de uma robusta tradição marxista local. Apenas neste ano, o Brasil recebeu as primeiras traduções diretas do alemão de textos maiores como O 18 de Brumário, Guerra Civil na França e os Grundrisse (Boitempo).

Desses lançamentos, certamente o último é o empreendimento mais ousado. Trata-se de uma espécie de primeira versão dos estudos que posteriormente dariam forma à obra maior de Marx: O Capital. Nos Grundrisse, podemos ver seu pensamento em movimento, apreendê-lo em seu processo de trabalho com suas articulações decisivas entre filosofia, lógica hegeliana e economia política.

No entanto, seria interessante perguntar qual é este Marx que atualmente retorna. O século 20 conheceu o Marx da luta de classes, da revolução proletária iminente, da teleologia histórica. O Marx fundamental na organização do imaginário que guiou os grandes partidos esquerdistas que animaram as lutas políticas do século com suas demandas de ruptura e revolução.

Pré-modernidade

Já nos anos 1930, os teóricos da chamada Escola de Frankfurt não tinham muitas esperanças nesse Marx, embora ele ainda mobilizasse grandes contingentes à espera da redenção histórica. Da mesma forma, o pensamento que se desdobrou a partir de maio de 1968 tinha como seu objeto maior de crítica à crença nas “metanarrativas” dessa história revolucionária.

Mas é fato que duas outras temáticas parecem agora retornar com força e se colocar na linha de frente do retorno de Marx. Elas alimentam o Marx teórico da alienação nas sociedades modernas e do fetichismo próprio ao capitalismo.

Certamente, a teoria marxista do fetichismo é um dos modelos mais profícuos de compreensão do núcleo regressivo das sociedades modernas, ou seja, da maneira com que nossas sociedades ditas desencantadas têm, em seu núcleo central, um encantamento estruturalmente parecido ao encantamento fetichista dos povos pré-modernos.

Ela foi usada como regime de crítica aos bloqueios sociais de reconhecimento nas esferas fundamentais de nossa forma de vida, como as esferas do trabalho, do desejo (vide o trabalho dos freudo-marxistas) e da linguagem (vide a teoria adorniana da cultura). Tal teoria, contrariamente ao que se acreditava nos anos 1960, é um setor fundamental da crítica da alienação que assombra nossas sociedades.

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Privado: Vladimir Safatle

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O professor, filósofo e colu­nista da CULT Vladimir Safatle ministra aula sob o tema “O Esgotamento da Ética do Trabalho” no dia 16/9, como parte do ciclo de palestras Mutações – Elogio à Preguiça, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Info.: (11) 5080-3000

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Privado: Histeria e obsessão

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Vladimir Satafle

Vem do psicanalista Jacques Lacan a ideia de que a neurose é, no fundo, uma questão. Neste momento em que os diagnósticos clínicos psiquiátricos simplesmente abandonaram o conceito de neurose, como se se tratasse de algo muito vago e amplo, a ideia lacaniana mereceria ser levada mais a sério.

Por trás dela, há a importante compreensão de que certos sujeitos podem organizar suas vidas de maneira tal que, em vários momentos, uma mesma questão aparecerá mostrando como as respostas anteriores eram provisórias.

Essa pergunta vai polarizar os conflitos, indicando um ponto estruturalmente frágil e sem resposta definitiva.

Note-se que a natureza neurótica da pergunta não está na sua enunciação, pois não há nada em sua enunciação que seja particularmente ordinário. Na verdade, ela se encontra na impossibilidade de suportar a ausência de uma resposta decisiva que nos colocaria, de uma vez por todas, em uma posição existencial assegurada.

Por isso, para o neurótico, tais questões são insuportáveis e insuperáveis, fonte constante de sofrimento psíquico. Elas se transformaram no dispositivo de confrontação constante com o desamparo.

No quadro clínico psicanalítico, encontramos, principalmente, duas formas estruturais de neurose: a histeria e a obsessão. Como tais, elas desapareceram dos manuais de psiquiatria contemporâneos (como o DSM-IV e o CID-10).

No entanto, seus sintomas foram dissociados, produzindo várias nosografias, como o transtorno de personalidade histriônica, o transtorno obsessivo-compulsivo, os transtornos somatoformes, entre outros.

Uma boa pergunta é: “O que se perdeu com a dissecação da histeria e da obsessão em vários subsistemas de sintomas?”. Uma das boas respostas que Jacques Lacan nos propiciaria seria: “Perdeu-se a capacidade de compreender as questões que animam as vidas dessas pessoas e que as levam a situações constantes de sofrimento”.

No caso da histeria, a questão norteadora seria: “O que é uma mulher?”. Já na obsessão, teríamos: “Estou vivo ou estou morto?”.

A dissimetria dessas duas questões é apenas aparente. Embora a primeira vincule, de maneira mais evidente, posição existencial e identidade de gênero (o que não poderia ser diferente na medida em que a psicanálise se serve das neuroses para pensar o processo conflitual de produção de tais identidades), as duas são modos de expor a insegurança a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo.

No decorrer de nossas vidas, assumimos papéis, modelos de comportamento e posições que parecem desvelar, em ocasiões particularmente difíceis, uma grande carga de alienação.

Uma mulher que transforma a feminilidade em uma questão existencial demonstra claramente o estranhamento de quem se pergunta: “O que há em mim que me faz suportar o lugar (“mulher”) no qual estou e para o qual o olhar desejante do outro se volta?”.

Como uma clássica filósofa nominalista, ela vê o nome como uma estranha etiqueta que se cola sobre as coisas. Como ela é essa coisa, tudo se passa como se o desejo daquele que cola etiquetas fosse, de longe, um mistério e, de perto, uma fonte repugnante de angústia e desgosto.

Desse impasse, ela não saberia escapar, já que os dois polos são, à sua maneira, verdadeiros.

Já aquele que se pergunta se está realmente vivo, aquele que sente em si mesmo algo em processo inexorável de mortificação, age como se a presença do desejo que vivifica não fosse algo evidente. Fácil seria dizer que tais pessoas se colocaram em posições nas quais os papéis e modelos assumidos funcionam como uma defesa mortificante contra o próprio desejo.

No entanto, elas parecem dizer que não sabem onde está esse desejo capaz de nos livrar de um desamparo mortificante. Elas não têm certeza se tal desejo está fora ou dentro dos papéis e modelos assumidos. Desse impasse, elas também não sabem como escapar.

Talvez porque nos dois casos, como dizia Wittgenstein, a resolução do problema não acontece com uma boa resposta, mas apenas quando desenvolvemos a força de esquecer o problema.

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Privado: Voltar a agir

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por Vladimir Safatle

Em Cartas ao Humanismo, Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensá-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age quando pensa.

Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento ser, no fundo, um subterfúgio contra a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir.

Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa é porque ele é a única atividade que tem a força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir.

É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, simplesmente, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.

A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas.

No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois ela é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postas na mesa. Por isso, essa ação não é livre.

Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo.

Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação inefetiva pare, para que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar.

Pensar politicamente

Talvez valha a pena lembrar tais colocações de Heidegger em um momento histórico tão rico e imprevisível quanto este que atualmente vivemos. Nunca, desde os anos 1970, vimos tantas manifestações em tantas partes do mundo exigindo, no fundo, a reinvenção da política e de seu caráter emancipador.

Cairo, Túnis, Tel Aviv, Santiago, Madri, Atenas, Nova York, Londres, Roma. Essas são apenas algumas das cidades que foram sacudidas, em 2011, por manifestações que misturavam descontentamento com os rumos da economia mundial e consciência clara da impossibilidade de continuar a esvaziar o campo do político com limitações advindas da submissão dos governos aos interesses financeiros dos setores abastados da sociedade.

Quando Nova York também entrou em ebulição, então todos perceberam que a maré havia chegado ao núcleo central do capitalismo. Desde os anos 1970 não se viam mais de mil pessoas presas nos EUA simplesmente por quererem se manifestar politicamente contra o horizonte fim de linha que os discursos hegemônicos oferecem.

Não deixa de ser engraçado perceber como setores conservadores da mídia tentaram rapidamente desqualificar tais manifestações perguntando: afinal, o que eles querem, que ações eles propõem?

A resposta-padrão dos manifestantes era: “Queremos discutir”. Maneira inteligente de dizer: “Primeiro, queremos nos livrar dos bloqueios e limites que vocês colocaram em nossas cabeças”. “Queremos aprender a recolocar todas as possibilidades na mesa, ou seja, queremos reaprender a pensar e a encontrar a força transformadora do pensamento.”

Não poderia haver melhor resposta.

Pois, quando as ações aparecerem, as críticas serão: mas elas são impossíveis, não há dinheiro para isso, elas ignoram os fundamentos da economia atual, isso já deu errado antes, e coisas do gênero.

Essas são respostas-padrão quando se trata de lutar contra um novo que está prestes a nascer. Todo verdadeiro acontecimento histórico sempre foi inicialmente visto como impossível e improvável. No entanto, eles ocorrem, mudando o quadro do possível.

Todo verdadeiro acontecimento muda a configuração do possível. Isso porque tal configuração já estava modificada anteriormente pelo pensamento, que desempenhou sua verdadeira tarefa. Por isso, deixemos os jovens pensar. Eles sabem o que fazem.

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Os melhores de 2011

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Fernanda Takai, vocalista do grupo Pato Fu

Bossypants, de Tina Fey
(Reagan Arthur Books/Little, Brown and Company)


“Tina Fey conta neste livro seu caminho desde a infância até o seu reconhecimento como atriz, roteirista e produtora, além de se desdobrar no papel de mãe enquanto atingia picos de popularidade mundo afora. Ela já vinha de momentos memoráveis no programa “Saturday Night Live” e, como todas as mulheres que trabalham em jornada tripla, sofre com suas dúvidas, vai desenvolvendo seus próprios métodos e corre riscos mesmo sendo a mulher forte da série “30 Rock”, da NBC. Tudo escrito de forma leve, embora  aborde passagens angustiantes em fases distintas de sua vida.”

Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e colunista da CULT

Cristal, de Paul Celan
(Ed. Iluminuras, org. e trad. Claudia Cavalcanti)

“Gostei de ler porque é um livro muito bem feito. Uma compilação, que mostra o desenvolvimento da escrita poética de Celan.”

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Privado: Nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre

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por Peter Pál Pelbart

É um dos grandes méritos desse livro conseguir formular com clareza e coragem que o tabuleiro psicopolítico sobre o qual ainda jogamos nossas peças, com seus atores, papéis, movimentos, estratégias, esgotou-se, pois repousa sobre o medo esse afeto que funda nossa sociabilidade, bloqueia nossa capacidade de ser afetado, gera o temor da desagregação, e fatalmente engendra um investimento compensatório em figuras de autoridade, segurança, proteção, identidade. A “angústia da perda do amor” engendra as subserviências mais abjetas. É uma “mutação dos afetos” que hoje se requer. Portanto, uma capacidade de ser afetado, diz o autor espinosanamente, única via para construir um outro plano para o pensamento e a ação. Mas não é Espinosa, o filósofo, que mais inspira esse livro, e sim Freud. Foi ele quem pensou o desamparo de maneira original. Longe da mera dependência devida à prematuração do bebê ao nascer, longe da incompletude funcional e insuficiência motora, o desamparo tal como aqui é concebido alude a uma assimetria inaugural, onde uma experiência de indeterminação na relação com o outro, próxima de um excesso, ali onde, como no trauma, diante de uma intensidade transbordante, as reações disponíveis já não bastam, advém uma espécie de impotência, de suspensão. É nessa região, nesse estado, que os possíveis já não se atualizam e outra coisa, antes não vivida e não experimentada, pode acontecer. Essa aposta na positividade da insegurança existencial ou ontológica, ali onde algo nos vem de fora ou do outro, e é incontrolável, não desemboca na autoculpabilização, na melancolização, na sujeição infantilizada, como no fascismo que Adorno analisou ou no fascismo virtual que habita nossas democracias, e que um atentado é suficiente para pôr em marcha, como se viu recentemente. Trata-se, ao contrário, a partir dessa não coincidência consigo mesmo, de dissolver inclusive a ideia unitária de povo, de identidade coletiva, fundada num território, numa autoridade ou numa “narrativa fundacionista ou redentora”, sempre cúmplice do culto do Estado. Assim, o desamparo como exposição à alteridade implica uma afectibilidade, e por conseguinte, uma outra lógica do liame social – um outro circuito dos afetos.

Se o desamparo, na esfera social, econômica e até nacional costuma ser fonte de medo e angústia, que dispara as fantasias de segurança, autoridade, justificando em última análise toda uma biopolítica securitária, mas também identitária, como se viu recentemente na reação francesa aos atentados de Paris, o pulo do gato do livro é fazer do desamparo, deslocado de sua conotação sociológica e resgatada ao campo psicanalítico, a afirmação da contingência e da errância, acompanhando os efeitos daí advindos na esfera de uma teoria do poder. Nesse salto político-filosófico, o desamparo deixa de ser algo contra o qual cabe lutar, para tornar-se uma dimensão que se deve assumir, o que permitiria que o embate na esfera política não mais se assentasse na autovitimização e na reivindicação infindável de reconhecimento e reparação, como é o caso em muitos contextos, para dar lugar a outra coisa.

Mas o que implica o desamparo, no sentido em que o entende o autor? Na experiência de despossessão, de indeterminação, de dissolução da identidade; em outros termos, é aquela experiência através da qual o sujeito, individual ou coletivo, se libera do que antes o qualificava, o unificava, o representava, o tipificava. O autor designa isso que ele postula o horizonte antipredicativo de reconhecimento, onde o reconhecimento não passa pelo predicado de quem está em cena. Assim, recusa-se tanto a “afirmação da identidade”, tão em voga, quanto o “reconhecimento das diferenças”, igualmente predominante. É óbvio que ambas se equivalem: a afirmação das identidades e o reconhecimento das diferenças – Deleuze já fustigava o reino das diferenças constituídas, que não passam de identidades contíguas, “conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas”. Num espírito deleuziano, eu diria que Vladimir reivindica uma zona de indiscernibilidade, de indiferença, onde o homem se livra de suas “propriedades”, de suas “particularidades” – é o que a filosofia política contemporânea mais ousada não cessa de reivindicar, a singularidade qualquer.

Tudo começa num “corpo capaz de produzir afetos que nos despedaçam” – corpo turbulento, des-orgânico, acrescenta ele, que requer um tempo seu – devir sem tempo, temporalidades múltiplas, heterogêneas, incomensuráveis, uma indeterminação espectral, acontecimentos impredicáveis inaugurando processos singulares. Como dirá o autor: “Quando abrirmos as portas do tempo com suas pulsações descontroladas e anômalas, suas múltiplas formas de presença e existência, então conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível”.

Nada disso é um libelo metafísico ou um psicologismo aplicado à política, mas uma intervenção na mais viva concretude de um contexto neoliberal e biopolítico onde o biopoder não se exerce apenas sobre corpos e mentes, gestão da população, da vida e da saúde, do tempo e de sua rentabilização, porém mobiliza e expropria a libido, calibra o medo e a esperança em meio à desregulação e a flexibilização generalizadas, introduz a lógica empresarial na gestão de si, cobra o gozo incessante, ou seja, modula as formas de vida numa intensificação infinita porém contábil, no que o autor chama, inspirado em Bataille, porém numa chave crítica, de “subjetivação do excesso”. É nosso indivíduo neoliberal, sedento de reconhecimento, mas espoliado do estranhamento – é esse estado de coisas que cabe analisar e desmontar, mesmo no campo do trabalho, onde já não se trata da produção do próprio dirigido a um outro, porém do impróprio, do sem propriedade, do sem destino, do sem utilidade, do sem valor de troca – a vida do gênero, o comum inapropriável, diria Agamben, entrecruzado com um Bataille revisitado, o da soberania como desperdício. É o esgotamento de uma certa ética protestante do trabalho, mas também de certa lógica da finalidade e da finalização. Como poderíamos discordar disso tudo? É tudo tão forte e bonito, tão articulado, tão pertinente, tão urgente!

Mas não pense o leitor que isso se desdobra com naturalidade. Os golpes que esse livro teve que aplicar para chegar a tal resultado são tão surpreendentes quanto seu resultado. Virar Hegel do avesso para mostrar que a dialética está muito mais próxima da ruptura, da descontinuidade, do esquecimento do que da teleologia que seus críticos lhe imputaram – inclusive mais próxima da diferença, pensada radicalmente. Lembrar que dar o que não se tem, em Lacan, nada tem a ver com falta ou carência, mas com desmesura, indiferença à medida, circulação do incomensurável. A irritação com as interpretações simplistas de Hegel ou Lacan ou Adorno, os coices que o livro distribui a torto e a direito são saborosos. Laruelle notou que o Negativo, predominante no século 19, foi substituído pela Diferença – paixão da Diferença. Mas na contracorrente, é como se Vladimir reintroduzisse a urgência da negatividade. Um leitor de Deleuze como eu poderia se sentir visado ou rechaçar alusões várias, claro, se fosse torpe e não sentisse que se trata de uma negatividade transmutada, para além de Hegel e mesmo de Adorno. Também poderia sentir-se espantado com a quantidade de Badiou espalhada pelo livro, ou de um Zizek levado tão a sério, ou mesmo de um Axel Honneth a quem é dedicado um capítulo inteiro. Às vezes tem-se a impressão que depois que alguns gigantes da filosofia faleceram, os anões criaram coragem para subir ao palco e fazer grande estardalhaço, desafiando e zombando dos gigantes desaparecidos. Mas isso tudo já não diz respeito ao livro, e sim ao circo filosófico contemporâneo. Felizmente, o livro dista mil léguas disso tudo.

Pois ele não se satisfaz com o que se diz sobre os autores supostamente ultrapassados, que assume o risco de virar do avesso as interpretações consagradas, que ousa sustentar uma perspectiva contraintuitiva a respeito de tudo, que não trabalha por filiação – tudo isso é salutar. E quando segue as implicações concretas de suas apostas teóricas, não tem medo de ir até o fim, num frutífero diálogo com Butler ou Agamben. Por exemplo, que a inscrição jurídica dos direitos das minorias, sem dúvida necessária num primeiro momento de afirmação identitária, pode implicar ulteriormente um controle biopolítico, no interior de uma gramática que incorpora as predicações autoproclamadas – catalogando as sexualidades, por exemplo, é preciso relembrá-lo sempre, mesmo que tais minorias se sintam com isso ofendidas. Daí a reivindicação de Agamben, tão aguda e necessária quanto difícil de ser imaginada, por uma vida para além do direito, ou o privilégio que atribui à destituição ou à desinstitucionalização, na contramão de tantas correntes, também progressistas.

Mais surpreendente, porém, é que ao lado dessa teorização tão radical, se enuncia a intransigente defesa da regulação econômica, para escândalo de um pós-modernismo que finge que o social é apenas uma miragem, ou que teríamos entrado numa era pós-política. Sim, a regulação econômica, sem que ela se faça acompanhar de uma regulação das relações sociais, inclusive naquilo que tange às relações familiares ou amorosas. Pois se a política é indissociável dos afetos, é justamente na medida em que eles vazam os contornos do que deve ser institucionalizado, codificado. Daí a liberdade e mesmo a necessidade de se falar até do amor, não como ágape, não como filia, mas outra coisa. Vladimir tem a ousadia de tratar disso com a fineza que raramente se encontra num tratado político: não se trata de uma relação intersubjetiva, não há dois indivíduos, nem fusão, nem contrato, nem reconhecimento de “propriedades”, nem “fetichismo da pessoa”, nem sistema de trocas, mas circulação de dons que quebram a reciprocidade, na gratuidade, numa destituição subjetiva que é impensável sem o corpo. Vladimir diz, com muita precisão: “Não será com os mesmos corpos construídos por afetos que até agora sedimentaram nossa subserviência que seremos capazes de criar realidades políticas impensadas. Mais do que novas ideias […], precisamos de outro corpo […]. Pois nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre”.

Como não ouvir aí um belo eco de Artaud? Mas Vladimir é mais sóbrio, e cita seu livro anterior, Grande Hotel Abismo: “Que afetos podem levar indivíduos a se implicarem com o que não tem a forma da pessoa, do Eu e nem a forma do comum, do que fundaria uma partilha do comum, mas com o que tem a forma do impróprio, do que funda uma partilha baseada no que não se configura nunca como minha propriedade?”. Ou seja, prossegue ele, que afetos criam sujeitos? Que afetos impulsionam os indivíduos, que acreditamos um dia dever ser, à dilatação produzida pela implicação com a desmesura que funda todo sujeito? Este é o problema central deste livro.

Desmesura como fundamento – é Bataille? É Heidegger? É um Nietzsche oculto e quase não citado? Ou é um Lacan revisitado, livrado da ortodoxia de seus seguidores? Em todo caso, ao descartar as noções de beatitude, de contentamento ou de felicidade, o autor explica que “para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se”. Não é o elogio da frustração, mas de se relacionar “àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar causar por aquilo que despossui o Outro. No desamparo, deixo-me afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar no Outro, algo que desampara o Outro”. Heteronomia sem sujeição. Ou, dito de outro modo, e mais belamente: “Amar alguém é amar suas linhas de fuga”.

Um leitor sensível ficará atento à ressonância deleuziana dessa fórmula, apesar de sua matriz lacaniana. Isso acontece amiúde, e não se deve a uma operação de despiste, mas a um pluralismo presente no Vladimir, que às vezes suas referências mais frequentes encobrem. Por isso, aconteceu-me coisa muito diferente do que concordar ou discordar. Eu me diverti com os golpes e contragolpes, talvez porque menos preso à questão da identidade dos autores visados ou celebrados do que à trajetória empreendida. E ao mesmo tempo em que acompanhava a problemática, o diagnóstico, a aposta teórica ou prática desdobrada, ocorreu-me reescrever mentalmente o mesmo livro a partir das minhas fontes mais familiares, sobretudo Nietzsche, Blanchot, Simondon, Deleuze-Guattari. Em outras palavras: a morte de Deus ou do homem, o Fora e o Desastre, a Individuação, os Agenciamentos de Desejo. Não vou cometer a indelicadeza de insistir nisso, é apenas uma confissão entre amigos.

Eu diria que é de uma política da existência que trata o livro do Vladimir. Ao partir do que ele chama de espoliação psíquica do estranhamento, estamos embocados numa posição do problema das mais agudas, sulfurosas e promissoras. Pois ao reintroduzir o estranhamento no pensamento político, tão repleto de polaridades caducas, faz transbordar nossa racionalidade calculante em direções indeterminadas e não prescritivas – já que a vida, retomada, como diz o autor, em sua voltagem especulativa, está próxima do que Foucault enxergou em seu último texto sobre Canguilhem: erro, errância. Vida errática, não viril, não plena, sem fundamento, excentrada, abrindo a via para uma biopolítica vitalista mais hesitante do que tonitruante, que desbarata todo fundamentalismo, totalização, finalização. No contexto atual, saturado de catastrofismo e salvacionismo, esse livro reintroduz a contingência, a suspensão, a deiscência, a disjunção, mesmo a queda, contrarrestando a performatividade do Capital que se apossa do pensamento e de sua potência. Assim, ele nos ajuda a respirar de novo, a pensar o novo.

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Privado: A linguagem como enterro

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por Vladimir Safatle

De fato, talvez tudo tenha começado diante de um corpo morto. Há de se imaginar este momento: pela primeira vez, alguém não era indiferente diante de um corpo morto. Uma indiferença que, no entanto, era de outra ordem do que a simples tristeza. Diante do corpo inerte de quem até então era objeto de afeto, alguém quis, pela primeira vez, lutar contra o tempo e seu cortejo de perdas. Aparecia assim uma tristeza que, pela primeira vez, portava algo mais do que tristeza. Ela portava a afirmação soberana da memória.

Negar a perda através da memória: não bastava que isto fosse uma operação defensiva. Ela deveria ser a realização de um destino. Pois defender-se da perda através da memória é como permanecer sempre no mesmo lugar, permanecer lá, no descampado diante do corpo morto. Mas afirmar que a memória realiza um destino é algo totalmente diferente. É como afirmar que as pessoas existem para habitar a memória de outros, para fazer dos outros o palco de uma existência que não é apenas a presença de um indivíduo, mas o emaranhado bizarro de vários outros. Um pouco como o conselho que a jovem Eugénie recebe em A filosofia na alcova, de Sade: “Se você quiser ser imortal, transe com o maior número possível de pessoas, pois estes nunca te esquecerão”.  Há de se admirar da ironia de um libertino que, no fundo, quer realizar o desejo religioso de redenção da carne, mas através da carne. Ironia de um libertino que, no fundo, quer transfigurar o ato de fazer sexo em maneira de se entregar à memória do outro. Há de se agradecer a Sade por isso.

Mas, se a memória é esta realização de um destino, então devemos dizer que tal destino começou a se realizar quando, pela primeira vez, alguém sentiu a angústia diante do corpo morto em decomposição, diante da potência desfiguradora do tempo. Pois havia uma imagem que não deveria ser apagada. Ela deveria permanecer. Para tanto, o tempo que desfigura deveria ser remetido à invisibilidade, sumir dos olhos de todos. Como se agora fosse possível separar a impermeabilidade da imagem e a porosidade dos corpos. Foi assim que talvez, pela primeira vez, alguém teve a ideia de enterrar um morto. Deveríamos agradecer também à potência criadora da angústia por isso.

Quando os mortos começaram a ser enterrados, a memória pôde aparecer como um peculiar luto criador. Não o luto como fixação que me leva a internalizar o objeto perdido, como quem internaliza uma sombra sobre o Eu. Mas o luto como a primeira condição da linguagem. Sem luto, não se fala, pois não se eleva as coisas à condição de signos. Assim, se quisermos continuar esta antiga tradição filosófica que especula sobre a gênese da linguagem, poderíamos dizer que a linguagem nasceu quando os mortos começaram a ser enterrados.

Um dia, Alexandre Kojève (no fundo, alguém melhor do que muitos de seus críticos) disse que “a palavra é o assassinato da coisa”. Maneira de lembrar como falar realiza melhor sua essência quando a fala se coloca como o ato de enterrar coisas, de deixar a presença das coisas morrerem para que elas habitem um universo no qual nada nunca passa completamente. A linguagem sempre realizará seu destino quando ela lembrar como sua essência está no enterro, e como o enterro é o ato maior de revolta contra a surdez devoradora do tempo.

Alguns podem achar este pathos da linguagem e da morte uma espécie de Blanchot piorado. Estes tem um pedaço de minha consideração. Afinal, sempre há alguém a achar que os momentos de espanto do outro são, no mais das vezes, expressões de um maneirismo que perdeu sua vergonha. Mas deixar de escrever este artigo seria levá-los mais a sério do que merecem. Além do que, a verdade nunca economizou maneirismos.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

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Pratos quebrados

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Vladimir Safatle

I.

“Um homem não se recupera desses solavancos, ele se torna uma pessoa diferente e eventualmente a nova pessoa encontra novas preocupações.” Foi isso o que Scott Fitzgerald tinha a dizer depois de seu colapso nervoso. Ele se via como um prato quebrado, “o tipo que nos perguntamos se vale a pena conservar”. Prato que nunca mais será usado para visitas, mas que servirá para guardar biscoitos tarde da noite.

De fato, há certos momentos no interior da vida de um sujeito nos quais algo quebra, que não será mais colado. Olhando para trás, é estranho ter a sensação de que andávamos em direção a esse ponto de ruptura, como se fosse impossível evitá-lo caso quiséssemos continuar avançando. Como se houvesse passagens que só poderiam ser vivenciadas como quebra. Talvez isso ocorra porque somos feitos de forma tal que precisamos nos afastar de certas experiências, de certos modos de gozo, para podermos funcionar. Dessa forma, conseguiremos fabricar um prato com nossas vidas, um prato pequeno. A mulher que precisa se afastar da maternidade, o homem que precisa se afastar de uma paixão na qual se misturam coisas que deveriam estar separadas: todos esses são casos de pratos fabricados para não passarem de certo tamanho.

No entanto, somos às vezes pegos por situações nas quais acabamos por nos confrontar com aquilo que nos horroriza e fascina. Se quisermos continuar, sabemos que, em dado momento, o prato se quebrará, que ele nunca será recuperado, que talvez não funcionará “melhor”, até porque ele viverá com a consciência clara de que há vários pontos da superfície nos quais sua vulnerabilidade ficará visível. Como disse Fitzgerald, um homem não se recupera desses solavancos. Algo desse sofrimento fica inscrito para sempre.

Mas ele também poderá descobrir que, mesmo depois da quebra, ainda é capaz de se colar, de continuar funcionando, um pouco como esses pratos que pintamos de outra forma para disfarçar as rachaduras. Se bem elaborada, tal experiência poderá levar à diminuição do medo daquilo que, um dia, fomos obrigados a excluir. Talvez aprendamos a compor com doses do excluído, já que a necessidade da exclusão não era simplesmente arbitrária, embora ela não precise ser radicalmente hipostasiada. Algo do excluído poderá ser trabalhado e integrado; algo deverá ser irremediavelmente perdido.

Um dia, descobriremos que todos os pratos da sala de jantar estão quebrados em algum ponto e que é com pratos quebrados que sempre se ofereceram jantares. Os pratos que não passam por alguma quebra são pequenos e, por isso, só servem para a sobremesa. No entanto, ninguém vai ao banquete por causa da sobremesa.

II.

Há pessoas que parecem estar sempre à espera de uma catástrofe. Quando dificuldades e necessidades de reacordos aparecem na vida, elas só podem ver nisso o prenúncio da catástrofe anunciada. Por terem, no fundo, vivido sob o signo da catástrofe iminente, elas não desenvolveram a capacidade de suportar um tempo de espera, a confiança de que podemos sempre encontrar modos de superar obstáculos. No entanto, boa parte de seus problemas vem do fato de elas esquecerem que, nem sempre, bater de frente contra um muro é a melhor maneira de atravessá-lo.

Um dia, Arnold Schoenberg disse a seu aluno John Cage: “Você compõe como quem bate a cabeça contra um muro”. “Então, quero bater minha cabeça até perfurá-lo”, respondeu Cage. A ideia pode ser boa, mas realizá-la talvez não seja a melhor coisa a fazer. Não por acaso, Cage será lembrado como alguém que tinha boas ideias, embora suas realizações nem sempre fossem realmente boas. Um muro não é algo feito para ser perfurado com a cabeça. No entanto, isso não significa que nossa cabeça seja fraca; significa que devemos aprender a saltar.

Para as pessoas que parecem estar sempre à beira de uma catástrofe, vale a pena lembrar que toda dificuldade é dificuldade de uma situação. Ela é a ausência de boa resposta para os desafios de uma situação. No entanto, somos sempre capazes de mudar de situação, de passar para o outro lado do muro. Precisamos apenas de tempo para observá-lo com calma, medir sua altura, deduzir sua espessura. Precisamos de perseverança para suportar a ideia de que serão necessárias várias tentativas, que nos machucaremos no meio do caminho. Mas a vida tem uma estranha benevolência para com aqueles que continuam tentando. Ela sabe que a capacidade de suportar fracassos é condição para mudarmos situações. Pois o fim não virá, nem a catástrofe. O que virá é uma capacidade maior para construir escadas e varas. A vida é capaz de resolver os problemas que ela coloca para si mesma.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

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Não é apenas Deus que sabe distinguir

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Vladimir Safatle

“Entre um falso e um verdadeiro gozo, quem senão Deus (Nous Theos) veria diferença?” Essa era a crítica feita por Bento Prado Jr. à crença de Herbert Marcuse na capacidade de distinguir entre bons e maus, entre verdadeiros e falsos prazeres. No entanto, Bento Prado tinha e não tinha razão.

Ele tinha razão, se acreditarmos em um princípio geral, universalmente aplicável, de distinção entre falso e verdadeiro gozo, entre hedonismo e prazer edificante. De fato, não encontraremos normatividades genéricas nesse campo. Ele não tinha razão, se lembrarmos que há uma ciência do singular no que diz respeito ao prazer. Se compreendermos o gozo como aquilo que orienta a conduta dos sujeitos em sua busca por satisfação, então deveremos admitir que todo sujeito distingue entre falso e verdadeiro gozo. Todo sujeito se apoia na capacidade que o vivente tem de escolher, selecionar e excluir para orientar sua conduta baseada na satisfação de certos desejos e da recusa de outros. Essa capacidade é singular, ela funciona com base na contingência de experiências singulares e não universalizáveis. No entanto, para o sujeito, ela é absolutamente necessária. Todo sujeito sabe que há certas experiências que, para ele, serão marcadas por um gozo muito próximo ao da morte, da dispersão extrema, da dissociação que nada constrói. Ele sabe que deverá encontrar uma forma de evitar tais experiências ou, ao menos, de enquadrar o gozo que elas prometem no interior de uma estrutura com a qual ele saberá como lidar melhor. Isso é inerente à capacidade de conservação de todo e qualquer organismo. Não tenhamos medo de dizer que isso é natural.

Crença na habilidade de distinção

A distinção entre falso e verdadeiro gozo pode ser lida como distinção entre um regime de satisfação que aumenta a capacidade de ação, a flexibilidade para suportar as contingências de nossa história, e outro que restringe tal capacidade e flexibilidade, que me impede de operar realizações. Não é apenas Deus que sabe fazer tais distinções. A vida as faz e, em um dado momento, é sinal de inteligência confiar o caráter aparentemente prosaico e trivial de considerações que acumulamos ao longo da vida. Elas são absolutamente verdadeiras, para nós. Fruto de um saber prático que não é simplesmente a internalização de coerções sociais exteriores. Em alguns momentos fundamentais, devemos confiar na habilidade que desenvolvemos para selecionar, excluir e compor, ou seja, na habilidade que desenvolvemos para distinguir entre falso e verdadeiro gozo.

Há momentos na vida em que não temos clareza da direção que devemos tomar, das ações que devemos realizar. Mas temos clareza das consequências que devemos saber evitar, de certas direções que, em hipótese alguma, devemos tomar. De fato, é errado acreditar que esse saber prático é fonte segura de orientação. Mas é igualmente errado acreditar que ele é apenas uma sucessão de equívocos. A esse respeito, Chesterton teve a sagacidade de escrever uma vez: “O homem que não consegue acreditar nos seus sentidos, e o homem que não consegue acreditar em nada além dos seus sentidos, os dois são insanos; porém, a insanidade deles não é provada por algum erro na sua argumentação, mas pelo erro evidente de sua vida. Os dois se trancaram em duas caixas, em cujo interior estão pintados o sol e as estrelas; os dois estão incapacitados de sair: um, para entrar na saúde e felicidade do céu; o outro, nem sequer para entrar na saúde e felicidade da terra”. Dificilmente, alguém seria capaz de dizer com tanta precisão que nossas evidências guardam algo de necessário para nossas formas de vida.

Tais considerações demonstram que podemos não saber como realizar, de maneira segura, o melhor. Podemos nem sequer saber o que é o melhor. Como o famoso asno de Buridan, que não sabe como escolher entre dois montes de comida à mesma distância, podemos entrar em colapso no interior de nossos sistemas de decisão. No entanto, sabemos bem o que é o pior. E todo organismo é capaz de mobilizar suas forças para evitá-lo.

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A farsa como tragédia

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Vladimir Safatle

“Vou interromper o senhor. A pergunta que tenho a lhe fazer é… O senhor tinha uma ideologia. Esta declaração é sua: ‘Tenho de fato uma ideologia. Minha avaliação é que o livre mercado competitivo é, de longe, uma maneira sem rival de organização das economias. Tentamos as regulamentações, nenhuma funcionou de maneira significativa’. É uma citação sua. O senhor teve autoridade para impedir as práticas irresponsáveis de empréstimo que levaram à crise das hipotecas subprime. O senhor foi aconselhado a agir nesse sentido por muitos outros. E agora toda a nossa economia está pagando por isso. O senhor acha que a sua ideologia o levou a tomar decisões que preferiria não ter tomado?”

Essas foram palavras do deputado norte-americano Henry Waxman pronunciadas para o então presidente do FED [Banco Central estadunidense], Alan Greenspan, quando este foi chamado ao Congresso para explicar sua irresponsabilidade diante da crise financeira de 2008.

Não deixa de ser impressionante lembrar como os choques econômicos liberais das últimas décadas foram feitos apregoando o fim das ideologias. Contra a “ilusão” de que haveria alternativas possíveis de desenvolvimento e distribuição, ouvimos durante décadas o mantra de que tais alternativas eram meras crenças ideológicas, pois o livre mercado competitivo era, de longe (talvez, só de longe), uma maneira sem rival de organização das economias.

Eis que descobrimos os cabeças pensantes do liberalismo justificarem suas ações equivocadas afirmando, de maneira descomplexada, terem uma ideologia. Bem, mas se esse for realmente o caso, cabe perguntar: como funciona tal ideologia? Esse é o objetivo do mais novo livro de Slavoj Zizek lançado no Brasil: Primeiro Como Tragédia, Depois Como Farsa.

Conhecido como um dos principais nomes da renovação teórica da esquerda mundial, Zizek é responsável por uma articulação inovadora entre psicanálise lacaniana, marxismo e análise de produções culturais do capitalismo contemporâneo.

Radicalidade

Neste livro, dois pontos merecem ser salientados. Primeiro, a compreensão acertada da existência: “da possibilidade real de que a principal vítima da crise em andamento não seja o capitalismo, mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global viável tornou-se novamente visível a todos”.

Zizek não poderia estar mais correto. A clareza da dificuldade de a ?esquerda crescer a partir da crise apenas indica como suas figuras eleitorais não têm mais capacidade de ousar em suas pautas. Suas ações não têm a radicalidade necessária para encontrar novas alternativas e mobilizar as largas camadas populares descontentes com os rumos da economia mundial.

Sobra espaço para a extrema direita xenófoba, com suas construções paranoicas e sua maneira patológica de aproveitar-se do ressentimento popular contra a burocracia liberal cosmopolita que vive de costas para a miséria.

Aqui, entra o segundo ponto a ser salientado no livro, a saber, a proposta de recuperação da “ideia do comunismo”. Não se trata de alguma defesa do retorno à experiência do socialismo real, tal como o século 20 conheceu.

No entanto, há aqui uma ideia importante a respeito de como devemos pensar a experiência revolucionária que animou os momentos decisivos do século 20. Que ela tenha fracassado e produzido o contrário do que pregava, eis algo que ninguém nega e que merece uma reflexão demorada. No entanto, é inegável sua força em produzir lutas que mostraram grande capacidade de mover a história, de engajar sujeitos no desejo de viver para além das limitações do presente.

É verdade que, atualmente, vemos um grande esforço de apagar tal desejo, isso quando não se trata de simplesmente criminalizar a história das revoluções, como se a tentativa do passado de escapar das limitações de nossas formas de vida devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como simples descrições de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás e, levando em conta os fracassos, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidade de metamorfose do humano são múltiplas. Como se não pudéssemos colocar a questão: não é necessário, muitas vezes, que uma ideia fracasse inicialmente para que possa ser recuperada em outro patamar e, enfim, realizar suas potencialidades?

Quantas vezes, por exemplo, o republicanismo precisou fracassar para se impor como horizonte fundamental de nossas formas de vida? A pergunta que Zizek quer colocar é: não seria o mesmo com a “ideia do comunismo”?

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Marx ataca

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Vladimir Safatle

Jacques Lacan costumava dizer que nunca se ultrapassava um grande pensador, pois a verdade era sempre nova. Talvez seja o caso de aplicar tal raciocínio a Karl Marx.

Poucos foram os autores tão acusados de nada mais ter a dizer sobre nosso tempo do que esse filósofo que um dia afirmou que a função maior do pensamento não era interpretar a realidade, mas transformá-la. Vinculou-se de bom grado o destino de suas ideias ao mesmo lugar a que foram enviados os regimes comunistas do século 20, ou seja, à lata de lixo da história.

No entanto, nestes últimos 20 anos pós-queda do Muro de Berlim não foram poucas as vezes em que o espectro de Marx pareceu retornar. Um retorno que ganhou nos últimos dois anos força inusitada.

Qualquer um que frequente livrarias pelo mundo percebe como livros sobre Marx ou de sua própria autoria voltaram às prateleiras. Embalado principalmente pelo desencanto provocado pela crise econômica de 2008, o retorno de Marx faz parte de um movimento lento que visa recolocar esquemas alternativos de reflexão sobre o desenvolvimento das sociedades modernas e seus impasses.

O caso brasileiro não poderia ser diferente, já que, entre nós, o pensamento marxista nunca desapareceu completamente – resultado da existência de uma robusta tradição marxista local. Apenas neste ano, o Brasil recebeu as primeiras traduções diretas do alemão de textos maiores como O 18 de Brumário, Guerra Civil na França e os Grundrisse (Boitempo).

Desses lançamentos, certamente o último é o empreendimento mais ousado. Trata-se de uma espécie de primeira versão dos estudos que posteriormente dariam forma à obra maior de Marx: O Capital. Nos Grundrisse, podemos ver seu pensamento em movimento, apreendê-lo em seu processo de trabalho com suas articulações decisivas entre filosofia, lógica hegeliana e economia política.

No entanto, seria interessante perguntar qual é este Marx que atualmente retorna. O século 20 conheceu o Marx da luta de classes, da revolução proletária iminente, da teleologia histórica. O Marx fundamental na organização do imaginário que guiou os grandes partidos esquerdistas que animaram as lutas políticas do século com suas demandas de ruptura e revolução.

Pré-modernidade

Já nos anos 1930, os teóricos da chamada Escola de Frankfurt não tinham muitas esperanças nesse Marx, embora ele ainda mobilizasse grandes contingentes à espera da redenção histórica. Da mesma forma, o pensamento que se desdobrou a partir de maio de 1968 tinha como seu objeto maior de crítica à crença nas “metanarrativas” dessa história revolucionária.

Mas é fato que duas outras temáticas parecem agora retornar com força e se colocar na linha de frente do retorno de Marx. Elas alimentam o Marx teórico da alienação nas sociedades modernas e do fetichismo próprio ao capitalismo.

Certamente, a teoria marxista do fetichismo é um dos modelos mais profícuos de compreensão do núcleo regressivo das sociedades modernas, ou seja, da maneira com que nossas sociedades ditas desencantadas têm, em seu núcleo central, um encantamento estruturalmente parecido ao encantamento fetichista dos povos pré-modernos.

Ela foi usada como regime de crítica aos bloqueios sociais de reconhecimento nas esferas fundamentais de nossa forma de vida, como as esferas do trabalho, do desejo (vide o trabalho dos freudo-marxistas) e da linguagem (vide a teoria adorniana da cultura). Tal teoria, contrariamente ao que se acreditava nos anos 1960, é um setor fundamental da crítica da alienação que assombra nossas sociedades.

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Privado: Vladimir Safatle

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O professor, filósofo e colu­nista da CULT Vladimir Safatle ministra aula sob o tema “O Esgotamento da Ética do Trabalho” no dia 16/9, como parte do ciclo de palestras Mutações – Elogio à Preguiça, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Info.: (11) 5080-3000

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Privado: Histeria e obsessão

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Vladimir Satafle

Vem do psicanalista Jacques Lacan a ideia de que a neurose é, no fundo, uma questão. Neste momento em que os diagnósticos clínicos psiquiátricos simplesmente abandonaram o conceito de neurose, como se se tratasse de algo muito vago e amplo, a ideia lacaniana mereceria ser levada mais a sério.

Por trás dela, há a importante compreensão de que certos sujeitos podem organizar suas vidas de maneira tal que, em vários momentos, uma mesma questão aparecerá mostrando como as respostas anteriores eram provisórias.

Essa pergunta vai polarizar os conflitos, indicando um ponto estruturalmente frágil e sem resposta definitiva.

Note-se que a natureza neurótica da pergunta não está na sua enunciação, pois não há nada em sua enunciação que seja particularmente ordinário. Na verdade, ela se encontra na impossibilidade de suportar a ausência de uma resposta decisiva que nos colocaria, de uma vez por todas, em uma posição existencial assegurada.

Por isso, para o neurótico, tais questões são insuportáveis e insuperáveis, fonte constante de sofrimento psíquico. Elas se transformaram no dispositivo de confrontação constante com o desamparo.

No quadro clínico psicanalítico, encontramos, principalmente, duas formas estruturais de neurose: a histeria e a obsessão. Como tais, elas desapareceram dos manuais de psiquiatria contemporâneos (como o DSM-IV e o CID-10).

No entanto, seus sintomas foram dissociados, produzindo várias nosografias, como o transtorno de personalidade histriônica, o transtorno obsessivo-compulsivo, os transtornos somatoformes, entre outros.

Uma boa pergunta é: “O que se perdeu com a dissecação da histeria e da obsessão em vários subsistemas de sintomas?”. Uma das boas respostas que Jacques Lacan nos propiciaria seria: “Perdeu-se a capacidade de compreender as questões que animam as vidas dessas pessoas e que as levam a situações constantes de sofrimento”.

No caso da histeria, a questão norteadora seria: “O que é uma mulher?”. Já na obsessão, teríamos: “Estou vivo ou estou morto?”.

A dissimetria dessas duas questões é apenas aparente. Embora a primeira vincule, de maneira mais evidente, posição existencial e identidade de gênero (o que não poderia ser diferente na medida em que a psicanálise se serve das neuroses para pensar o processo conflitual de produção de tais identidades), as duas são modos de expor a insegurança a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo.

No decorrer de nossas vidas, assumimos papéis, modelos de comportamento e posições que parecem desvelar, em ocasiões particularmente difíceis, uma grande carga de alienação.

Uma mulher que transforma a feminilidade em uma questão existencial demonstra claramente o estranhamento de quem se pergunta: “O que há em mim que me faz suportar o lugar (“mulher”) no qual estou e para o qual o olhar desejante do outro se volta?”.

Como uma clássica filósofa nominalista, ela vê o nome como uma estranha etiqueta que se cola sobre as coisas. Como ela é essa coisa, tudo se passa como se o desejo daquele que cola etiquetas fosse, de longe, um mistério e, de perto, uma fonte repugnante de angústia e desgosto.

Desse impasse, ela não saberia escapar, já que os dois polos são, à sua maneira, verdadeiros.

Já aquele que se pergunta se está realmente vivo, aquele que sente em si mesmo algo em processo inexorável de mortificação, age como se a presença do desejo que vivifica não fosse algo evidente. Fácil seria dizer que tais pessoas se colocaram em posições nas quais os papéis e modelos assumidos funcionam como uma defesa mortificante contra o próprio desejo.

No entanto, elas parecem dizer que não sabem onde está esse desejo capaz de nos livrar de um desamparo mortificante. Elas não têm certeza se tal desejo está fora ou dentro dos papéis e modelos assumidos. Desse impasse, elas também não sabem como escapar.

Talvez porque nos dois casos, como dizia Wittgenstein, a resolução do problema não acontece com uma boa resposta, mas apenas quando desenvolvemos a força de esquecer o problema.

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Privado: Voltar a agir

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por Vladimir Safatle

Em Cartas ao Humanismo, Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensá-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age quando pensa.

Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento ser, no fundo, um subterfúgio contra a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir.

Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa é porque ele é a única atividade que tem a força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir.

É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, simplesmente, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.

A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas.

No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois ela é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postas na mesa. Por isso, essa ação não é livre.

Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo.

Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação inefetiva pare, para que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar.

Pensar politicamente

Talvez valha a pena lembrar tais colocações de Heidegger em um momento histórico tão rico e imprevisível quanto este que atualmente vivemos. Nunca, desde os anos 1970, vimos tantas manifestações em tantas partes do mundo exigindo, no fundo, a reinvenção da política e de seu caráter emancipador.

Cairo, Túnis, Tel Aviv, Santiago, Madri, Atenas, Nova York, Londres, Roma. Essas são apenas algumas das cidades que foram sacudidas, em 2011, por manifestações que misturavam descontentamento com os rumos da economia mundial e consciência clara da impossibilidade de continuar a esvaziar o campo do político com limitações advindas da submissão dos governos aos interesses financeiros dos setores abastados da sociedade.

Quando Nova York também entrou em ebulição, então todos perceberam que a maré havia chegado ao núcleo central do capitalismo. Desde os anos 1970 não se viam mais de mil pessoas presas nos EUA simplesmente por quererem se manifestar politicamente contra o horizonte fim de linha que os discursos hegemônicos oferecem.

Não deixa de ser engraçado perceber como setores conservadores da mídia tentaram rapidamente desqualificar tais manifestações perguntando: afinal, o que eles querem, que ações eles propõem?

A resposta-padrão dos manifestantes era: “Queremos discutir”. Maneira inteligente de dizer: “Primeiro, queremos nos livrar dos bloqueios e limites que vocês colocaram em nossas cabeças”. “Queremos aprender a recolocar todas as possibilidades na mesa, ou seja, queremos reaprender a pensar e a encontrar a força transformadora do pensamento.”

Não poderia haver melhor resposta.

Pois, quando as ações aparecerem, as críticas serão: mas elas são impossíveis, não há dinheiro para isso, elas ignoram os fundamentos da economia atual, isso já deu errado antes, e coisas do gênero.

Essas são respostas-padrão quando se trata de lutar contra um novo que está prestes a nascer. Todo verdadeiro acontecimento histórico sempre foi inicialmente visto como impossível e improvável. No entanto, eles ocorrem, mudando o quadro do possível.

Todo verdadeiro acontecimento muda a configuração do possível. Isso porque tal configuração já estava modificada anteriormente pelo pensamento, que desempenhou sua verdadeira tarefa. Por isso, deixemos os jovens pensar. Eles sabem o que fazem.

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Os melhores de 2011

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Fernanda Takai, vocalista do grupo Pato Fu

Bossypants, de Tina Fey
(Reagan Arthur Books/Little, Brown and Company)


“Tina Fey conta neste livro seu caminho desde a infância até o seu reconhecimento como atriz, roteirista e produtora, além de se desdobrar no papel de mãe enquanto atingia picos de popularidade mundo afora. Ela já vinha de momentos memoráveis no programa “Saturday Night Live” e, como todas as mulheres que trabalham em jornada tripla, sofre com suas dúvidas, vai desenvolvendo seus próprios métodos e corre riscos mesmo sendo a mulher forte da série “30 Rock”, da NBC. Tudo escrito de forma leve, embora  aborde passagens angustiantes em fases distintas de sua vida.”

Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e colunista da CULT

Cristal, de Paul Celan
(Ed. Iluminuras, org. e trad. Claudia Cavalcanti)

“Gostei de ler porque é um livro muito bem feito. Uma compilação, que mostra o desenvolvimento da escrita poética de Celan.”

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O último capítulo

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A ascensão do neoliberalismo como política de Estado representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos

 

Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita. Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à condição de potência emergente, virtual quinta economia do mundo, vê-se agora como um território em desagregação acelerada. Um país completamente à deriva. Para outros, ele simplesmente expressa atualmente, de forma mais brutal, os impasses de um processo que deve ser compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sentido desta dinâmica global é condição necessária para entendermos como um país pode chegar a impasses tão espetaculares em um prazo tão curto de tempo. Pois a história brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história. Ela é o setor mais influente da história latino-americana e esta, por sua vez, está vinculada nessas últimas décadas à ascensão da esquerda ao poder.

De fato, a experiência da esquerda latino-americana no governo nestes primeiros anos do século 21 foi o último capítulo da história da esquerda mundial no século 20. O que podemos chamar de “experiência latino-americana de governo de esquerda” presente nos últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, Peru, El Salvador, Haiti e Honduras foi o término de uma longa história mundial marcada pela tentativa de consolidar políticas redistributivas, regulação dos agentes econômicos e fortalecimento de poder popular. Que esta história tenha encontrado na América Latina um de seus terrenos fundamentais, eis algo a ser creditado a uma conjunção de dois fatores.

Primeiro, a América Latina teve um déficit contínuo de integração popular aos processos de decisão política até a década de 1990. Pois esta integração se deu normalmente de forma frágil, pelas vias do populismo, e de forma intermitente, sendo rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares, em especial no período de meados dos anos 1960 até o final dos anos 1980. A América Latina foi capaz de preservar uma concentração de poder no interior de grupos de elites cujas raízes, muitas vezes, são encontradas ainda nos períodos coloniais. Tais grupos souberam se associar localmente a “formadores de opinião” (como artistas e intelectuais), construir articulações cerradas entre estado-empresariado-imprensa, garantindo assim sua perenidade.

Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de decisão política em continentes com a Ásia e a África foi feita no interior de lutas coloniais, a América Latina tinha passado pela descolonização já no século 19. Isto permitiu às lutas populares não serem imediatamente inscritas como lutas eminentemente nacionais ganhando assim, de forma mais clara, a configuração de lutas sociais nas quais questões transnacionais de classe e desigualdade podiam aparecer na linha de frente.

Lembremos então como a experiência latino-americana conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos principais. No primeiro, encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado por reformas estruturais nas  instituições do poder e por processos de incorporação popular populista. Encontramos aqui países como Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua. Este modelo, autodenominado “bolivariano”, vendeu-se como “o socialismo do século 21”, mas foi em larga medida dependente de dinâmicas de constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século 20, com o consequente investimento libidinal massivo em figuras personalizadas do poder, como no caso da Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram sua força momentânea e sua fraqueza final, pois os processos de identificação personalizada se esgotam no tempo, não podem ser transferidos a outros ocupantes do poder, fazendo da política a gestão contínua do vazio. O caso mais complexo deste grupo, por ser o mais bem-sucedido, é a Bolívia, com sua organização institucional inovadora, seu crescimento econômico ininterrupto e seu conceito de “estado plurinacional”.

No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão social marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas institucionais próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular também caracterizado como populista. Este é modelo próprio, principalmente, ao Brasil e à Argentina, mas em menor grau ao Uruguai, Chile, Peru, El Salvador e, por algum tempo, ao Paraguai. Tal modelo representou uma experiência retardatária que procurou realizar políticas locais de redistribuição respeitando o espaço político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de certa forma, repetir determinadas estratégias de gestão da social-democracia europeia do pós-guerra. À exceção do Uruguai, que soube mobilizar pautas de reconhecimento e liberalização de costumes para consolidar adesão popular, e do Paraguai, que sofreu um golpe de Estado parlamentar já em 2012, este modelo entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo em todos os países. Resultado de políticas pós-ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação entre horizonte de social-democracia e populismo. O que não deveria impressionar ninguém, pois pensar a América Latina exige saber operar com paradoxos, com contradições sem superações.

Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tem uma tendência particular a se ver como a maior ilha do mundo, procurando desenvolver análises de seus processos político-sociais como se sua estrutura causal fosse completamente endógena. No entanto, melhor seria se procurássemos perceber como se dá nosso modo de integração a movimentos globais, não apenas para denunciar como em certos momentos acabamos por mimetizar processos em atraso, mas principalmente por expor as dinâmicas de esgotamento do que outros apenas começam a sentir. Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana, em especial em seu setor mais avançado, a saber, este capitaneado pelo Brasil, não é apenas algo que diga respeito a uma região periférica do capitalismo mundial. Ele foi a realização paulatina de que o tempo da democracia liberal e de seus acordos já não existia mais. Nós havíamos chegado tarde demais. Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de forma dramática.

Não há lágrimas pelo fim da democracia liberal

Neste contexto, lembremos como a democracia liberal, tal qual a conhecemos, é uma invenção recente que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobrevivência foi a capacidade de orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”. Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores do dito Estado de Bem-estar Social. Mesmo os partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos 1970, com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do Partido Comunista Italiano), operaram no interior dessa lógica de respeito ao horizonte institucional liberal, retirando de circulação toda luta por mutações institucionais profundas, operando no esquadro de uma “coexistência pacífica”, isto até o momento em que perderam de vez sua força e relevância. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo com vista à liberalização da economia e a desregulamentação gradativa das defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que a constituição do Estado do Bem-estar Social foi, de certa forma, uma criação conjunta entre esquerda e direita. Não é possível contar a história da formação do Estado-providência alemão, por exemplo, sem passar pelas políticas implantadas pelos democratas-cristãos, nem contar a história do seu símile francês sem passar pelo gaullismo.

Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia liberal e seus gestores do Estado do Bem-estar Social estava fadada a durar pouco. Não porque ela produziria letargia econômica e baixa competividade, mas porque o patronato, intocado em suas posses, utilizaria a primeira oportunidade para aumentar rendimentos reduzindo os elementos do custo salarial e criando condições para uma verdadeira reedição dos processos de acumulação primitiva. Ela veio em meados dos anos 1970 através de uma conjunção improvável entre crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo custo da previdência social, mas pelo conflito Israel-mundo árabe, ou seja, pelas consequências das ambivalências das políticas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o ciclo mais constante de crescimento no século 20, produzindo uma insegurança econômica profunda a ser aproveitada por novos discursos de reforma social.

Por sua vez, alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é real. Para tanto, foi necessário uma inversão peculiar, destas que o capitalismo mostrou-se hábil em operar. Maio de 68 produziu no Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Estado e das instituições, a recusa da rigidez da sociedade do trabalho e a consciência do caráter extensivo do controle social próprio às figuras do Estado-providência. Ele esperava com isso permitir a emergência de um sujeito político com força de transformação global em direção a modelos capazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético como a democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com menos força do que imaginavam. Junto a eles emergiram também tanto sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta que, mesmo sem expor isto de forma clara, usavam a potência da sedição para empurrar o mundo para fora da democracia liberal. No entanto, não para além dela, mas para aquém.   

Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no pacto que sustentou a democracia liberal se deu com a leva neoliberal de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ao final dos anos 1970. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, e em larga medida conservado por décadas foi desmontado por uma política de retração do Estado, de desregulação progressiva da economia e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais. Há de se lembrar como, cinco anos depois de assumir o governo do Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente o declínio da produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra (11,9% em abril de 1984).

Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar. As experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas uma sociedade letárgica, presa na sustentação de um Estado ineficiente e pesado. Ou seja, tais experiências teriam sido ultrapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que desconhece ideologias, que conheceria apenas “resultados”.

No entanto, os “resultados” mostram outra coisa. Eles mostram, por exemplo, como o nível de pobreza nos EUA cai progressivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exatamente com a ascensão das políticas neoliberais, nunca tendo então caído de forma sustentada. Em 2015, ele atingia 13,5% da população (dados do US Census Bureau, Current Population Survey), mais do que em 2007. Os índices de desigualdade aumentaram exponencialmente nos últimos trinta anos.  

Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão do neoliberalismo como política de Estado representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos. Restringindo paulatinamente o horizonte de políticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à economia, “não há escolha” mesmo diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão da segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma mera pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua impotência.

É neste horizonte de capitulação que a experiência brasileira se insere. Isto ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. O Brasil podia vender ter ultrapassado o primeiro impacto da crise operando políticas proto-keynesianas e de consolidação de capitalismo de Estado. Mas o caminho posterior será outro. Paulatinamente, seu destino foi o mesmo de todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de investimentos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável. Este processo que agora mostra sua face mais completa começa de maneira evidente no último governo Dilma.

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Ruínas estéticas

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Por que a arte moderna parece sempre ter que dar conta de linguagens já gastas?

 

Hegel afirma, em suas Lições sobre a filosofia da história, que os persas foram o primeiro povo a entrar na história “porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu” deixando atrás de si a mobilidade e a inquietude do que só pode se exprimir como ruínas.

Tais colocações são interessantes por nos lembrar o que exatamente são ruínas. Elas não são simplesmente os restos do que um dia esteve presente no passado. Elas são as provas de que o passado sempre esteve animado por uma estranha instabilidade, inquietude que faz com que nada subsista completamente.

De uma certa forma, se a Pérsia é o primeiro povo histórico que desapareceu é porque o que eles construíram já era, desde o início, ruínas. Seu material já era o efêmero, o transitório, o fugidio. Esta é uma maneira interessante de introduzir a questão: por que a arte moderna é assombrada pelas ruínas? Por que ela parece sempre ter que dar conta de linguagens arruinadas e gastas?

Se um dos sonhos modernistas por excelência foi muitas vezes a procura do acontecimento gerador de uma ruptura absoluta (na música, o melhor exemplo, é Schoenberg e o dodecafonismo), há de se perguntar por que este sonho nunca parece vir sem seu pesadelo: o pesadelo de uma linguagem arruinada que nunca morre, linguagem que tira de algum lugar estranho e força de não querer morrer.

Talvez possamos colocar esta pergunta lembrando de uma afirmação de Theodor Adorno:  “Não há dúvidas de que a história da música é uma progressiva racionalização (…) Não obstante, a racionalização é apenas um de seus aspectos sociais, assim como a racionalidade ela própria. (…) No interior da evolução total de que participou através da progressiva racionalidade, a música foi também, e sempre, a voz do que ficara para trás, ou do que fora vítima”.

Comecemos por nos perguntar o que pode ser uma linguagem estética arruinada. Tal como uma construção em ruínas, uma linguagem arruinada é aquela na qual não é mais possível morar, seus pilares estão quebrados, seu tempo já passou.

Levando em conta apenas o aspecto técnico, é claro que podemos, por exemplo, compor atualmente uma sonata como Haydn ou uma sinfonia como Schubert. No entanto, isto não fará mais sentido do ponto de vista do estado atual da gramática musical porque a ordem trazida pelo classicismo e pelo romantismo já não é mais capaz de sustentar seus acordos. Ninguém toca hoje um acorde perfeito impunemente.

No entanto, isto não parece impedir a arte mais avançada do século 20 de procurar absorver restos destas linguagens que já não têm mais seu próprio tempo ou, como dizia Adorno, de ser a voz do que ficara para trás.

Não se trata aqui de um mero movimento de regressão. Na verdade, estamos diante da estetização da consciência de que nosso mundo é feito de palavras que perdem força, de figuras em desaparecimento, de formas que envelhecem mas que continuam, ainda, a mobilizar nossos desejos, um pouco como esses objetos infantis que guardamos, como se eles fornecessem uma cartografia das estações pelas quais nossas promessas de felicidade passaram.

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Dialetica come diavolo

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Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo 2 de Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian Leverkühn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um rufião ou um marginal. Na verdade, “[…] usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado. Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades”.

Em suma, um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que têm nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século 20 conviveu de maneira difícil devido à sua consciência crítica, aos seus livros, aos artigos em jornais e às entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo que não levará Leverkühn ao deserto para tentá-lo com poder e prazer. Os argumentos diabólicos mudaram depois de certo tempo. Agora, sua tentação passa por discussões sobre o “nível geral da técnica de Beethoven”, a função expressiva do acorde de sétima diminuta no começo do opus 111 e de como “cada som traz em si o todo e também toda a história”. Sim, agora o diabo parece ser a voz mais sensata para aqueles que não suportam o estado atual da linguagem, que sabem como: “a situação é demasiado crítica, para que a ausência de crítica esteja à sua altura”.
Mas essa não era a primeira vez que as palavras de um filósofo apareciam na boca deste que tem a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de embaralhar o sim e o não, de tirar o julgamento do solo seguro onde o certo ainda é o certo e o errado, ainda errado. Essa cena já se repetira anteriormente. O diabo e aquele que procura se afastar das antigas teorias, que sonha em recuperar os frutos da vida, já se encontraram antes. Naquele momento, e vão-se aí duzentos anos, ele não teve problemas em se apresentar com sua alcunha de origem, a saber, “o espírito que sempre nega”. O mesmo espírito que, se não tinha as feições de outro filósofo, tinha certamente seu indefectível sotaque suábio. Antes de encarnar em Adorno, o diabo já aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.

Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são, à sua maneira, bastante aristotélicos. Pois de onde viria essa peculiar tendência de associar a dialética nascente em seu território a uma atividade infernal, se em algum momento eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica de Aristóteles? Desde Aristóteles, aquele que acredita poder suspender o princípio de não contradição só pode nos convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética, é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura capaz de responder a exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe. Goethe e Thomas Mann sabiam disso.

Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, Adorno foi convidado a aparecer ao mundo não apenas como “em suma, um intelectual”, mas como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação determinada”, como dizia Habermas, Adorno nunca ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados, só poderiam expressar o niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que seja ao inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois se o diabo é um desses fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma generosa. Ele pode ser, por exemplo, esse lugar no qual a ruína parece eterna e insuperável, no qual estamos condenados a cantar a cantinela triste da finitude, lugar no qual as condições da práxis transformadora encontram-se, por isso, completamente impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa.

Surgir e passar que não surge nem passa
Bem, talvez tenha chegado a hora de se perguntar sobre o que aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no que diz respeito a Adorno, mas principalmente no que diz respeito à dialética. Erro que não seria simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como “A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários, quanto são negativos e evanescentes”.
Esse delírio báquico, em que não há membro que não esteja ébrio, só pode aparecer para certo senso comum como palavreado de quem quer criar movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas desaparecimentos, mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No coração dessa dialética delirante, encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os pensamentos determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a filosofia, ao menos essa que a dialética defende, não seria exatamente o discurso daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disso que nos permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte regulador da crítica. Talvez isso explique por que as paradas finais da dialética sempre foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isso se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do conceito.
Mas se a dialética prescinde de um mundo, ela não deixa de se debruçar sobre os fatos mais concretos da existência: da economia política à literatura, dos dados da natureza à indústria cultural. Talvez seja mesmo o caso de dizer que ela só pode se debruçar sobre os fatos mais concretos porque ela pode abandonar toda e qualquer Weltanschauung. Pois quando não se precisa mais de um mundo, podemos enfim ver a processualidade infinita que anima o movimento do que aparece, deste “surgir e passar que não surge nem passa”. E talvez ninguém mais do que Adorno foi sensível ao fato de que a liberação da processualidade do interior de uma totalidade que cabe em uma Weltbild era a condição para a intelecção clara da produtividade do pensamento. Talvez a essência de sua experiência intelectual esteja exatamente aí, nessa tentativa de pensar a processualidade de forma imanente, seja por meio da reconstrução filosófica da dialética, seja por meio do demorar-se diante dessa arte do tempo por excelência que é a música.

É possível que alguém possa estranhar o fato de se falar em produtividade do pensamento quando se é questão de uma dialética negativa. Adorno sabia do passo que dava ao afirmar que a dialética não deveria mais ser compreendida como dialética idealista, nem como materialismo dialético, mas como essa estranha alcunha de dialética negativa: “A formulação ‘Dialética negativa’ vai contra a tradição. Desde Platão a dialética procura estabelecer algo de positivo através do pensamento (Denkmittel) da negação; figura que uma negação da negação posteriormente nomeará de maneira pregnante. O livro [no caso, Dialética negativa] gostaria de livrar (befreien) a dialética desta essência afirmativa, mas sem nada perder em termos de determinidade”.

Livrar a dialética da sua essência afirmativa sem nada perder em termos de determinidade. Uma função não exatamente evidente que passa por compreender de forma totalmente nova o que pode ser “determinar algo”. Determinar é predicar algo com atributos diferenciais capazes de identificar um termo, é definir sua polaridade com seu contrário, é adequar a experiência da coisa aos limites do que pode ser representado? Na verdade, todo o problema, e ele está longe de ter sido realmente resolvido, passa por definir o que significa uma atividade que tem sua força motriz na capacidade de negar a si mesma. Ela nos permite começar a pensar o que significa algo que poderíamos chamar de “determinação instável”, pois determinação que não se define por meio de alguma diferenciação ontologicamente assegurada, mas que sempre se desloca devido a um movimento interno no qual sua abertura nunca se esgota por completo.

Houve um momento em que a dialética precisou colocar tal força motriz em evidência, levá-la à frente de forma incondicional se quisesse dar ao pensamento as condições de sua produtividade. Porque, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se produz por meio da definição normativa do dever-ser, e ninguém menos do que Hegel recusou tal ideia. Ela se produz a partir do reconhecimento do desconforto em relação aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isso, ela nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte normativo que a legitima.

Nesse sentido, liberar a dialética de sua essência afirmativa nunca foi, como alguns gostariam de acreditar, perpetuar a eterna melancolia dos que só veem possibilidades que nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo impede toda a reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século 20 exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu uma ontologia da inadequação. Há um equívoco fundamental de setores importantes da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa. Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade em Adorno é forma de não esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos esclarece de onde a existência retira sua força para se mover.

Se tal latência deve ser compreendida como negatividade, ou se quisermos utilizar o termo adorniano mais preciso como “não identidade”, é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se sedimentar como presença. Essa é uma ideia fundamental da dialética: começa-se pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo. O que não poderia ser diferente, já que a inflexão marxista da dialética adorniana, e nesse ponto a influência de História e consciência de classe, de Lukács, não é negligenciável, deu-lhe a sensibilidade de perceber como a crítica ao capitalismo não poderia ser apenas crítica aos processos de pauperização social e de concentração econômica produzidos pela dinâmica de autovalorização do capital. Ela deveria também ser crítica à “estética transcendental” do capitalismo contemporâneo, ou seja, crítica a seu modo de unificar o espaço por meio da intercambialidade, de esvaziar o tempo de suas distinções qualitativas, prensando-o em uma pulsação de aceleração/desaceleração infinito ruim e, assim, de controlar a vida ao definir a forma geral do que pode ser experimentado e desejado. Esse modelo de racionalização é o regime de determinação das condições de possibilidade do existente e contra ele a dialética um dia compreendeu que precisaria saber mobilizar as forças diabólicas do grau zero da determinação.

Questão de método
A partir disto, o pensamento pode se mover acreditando que o sofrimento diante das limitações produzidas por formas hegemônicas de pensar o tempo e o espaço já traz, em si, a produtividade do que potencialmente se orienta em novas direções. Por isso, um pensamento que aceita a processualidade contínua, como gostaria de mostrar ser o caso de Adorno, terá no seu bojo o desejo de reconfigurar por completo a noção de “presença” e, por isso, de temporalidade. Reconfiguração que não pode ser resultado de uma espécie de procuração filosófica. Não é uma decisão filosófica, seja por meio do recurso a uma crítica do conhecimento, seja por meio do recurso a uma ontologia renovada, que impõe o modelo de tal reconfiguração. O que não poderia ser diferente para alguém que inicia sua carreira filosófica afirmando: “Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen) através da força do pensamento”.

Isso talvez nos explique uma questão de método a respeito da produção adorniana. Poucos foram os filósofos que, durante o século 20, saíram tanto do campo estrito da filosofia. Mesmo que a produção adorniana seja marcada por monografias filosóficas (sobre Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Hegel, além de cursos e textos sobre Kant), o que mais impressiona foi seu desejo em confrontar-se continuamente com campos empíricos como a sociologia, os estudos de mídia, a crítica literária, a psicologia social, a psicanálise e, principalmente, a crítica musical. Isso diz muito a respeito de como pensa aquele que pensa como filósofo. Lembremos desta afirmação do jovem Adorno: “Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura. Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido, indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências particulares”.

Isso talvez explique um pouco porque metade da obra de Adorno versa sobre seus textos dedicados à estética musical e à experiência estética. Alguns poderão ver nisso a manifestação de certo derrotismo de alguém que, não acreditando mais nas possibilidades de transformação política global, encerra-se na contemplação das obras de arte mais avançadas de seu tempo. Esse esquema da reflexão estética como prática compensatória às desilusões diante da pretensa impossibilidade da ação revolucionária é, no entanto, ruim. Ele expressa um desconhecimento da maneira com que a experiência estética corrói paulatinamente a sensibilidade hegemônica, abrindo o caminho para a renovação da experiência social por meio da sensibilização a novas formas e modos de organização. A noção de práxis dos detratores da força transformadora da produção estética é limitada e não esconde uma antiga desqualificação filosófica pelas artes. A escuta das transições ínfimas de Alban Berg e a meditação sobre o estilo tardio de Beethoven são apenas alguns dos exemplos mais visíveis da capacidade das obras de arte em transformar a desorganização em força produtiva, a negação das aspirações funcionais da forma em modo de construção de novas formas. No fundo, Adorno age como quem diz: são as obras de arte que, no final das contas, nos ensinam para onde a dialética pode nos levar.

Vladimir Safatle é filósofo e professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP

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A propósito de um erro de estrutura

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A possibilidade de morrer várias vezes nos livraria de certos medos próprios a organismos que morrem apenas uma vez

 

Se me permitem, o maior erro da criação foi colocar a morte no fim, como um bloco completo que se manifesta de uma vez. Foi uma ideia ruim, faltou dialética neste momento da criação, é o mínimo que se pode dizer. Alguém deveria ter pensado na possibilidade de se morrer às vezes, várias vezes. Você poderia, por exemplo, morrer durante seis meses e, três anos depois, morrer novamente três semanas. Eu arriscaria dizer que o dito “problema da vida”, toda essa confusão que uma má filosofia popular chama normalmente de “o problema da vida”, resume-se a isto: nos impediram de morrer por um tempo. Então você precisa fazer esta escolha teológica desprovida de sentido: ou escolher viver ou morrer de vez. Que tipo de lógica de oposições é essa? De fato, foi uma decisão de principiante. Morrendo de vez em quando, sentiríamos a vida calar, o sangue parar de circular e deitar em silêncio, o corpo esfriar até o grau zero, os pensamentos se despedirem um por um. Sentiríamos a produção terminar. Sim, veríamos a produção terminar e o desejo ter de dizer: “eis que os objetos se desfazem”. E depois de certo tempo, o sangue voltaria lentamente a circular até encontrar novamente seu pulso, o corpo voltaria a se esquentar e acordaríamos com os lábios voltando a sentir. E teríamos outro ritmo: o ritmo dos que voltaram mais uma vez. E teríamos outro pensar; o pensar dos que um dia morreram e conservaram a lembrança da sua morte, da sua primeira vida, de sua segunda. Isto nos livraria de certos medos próprios a organismos que morrem só uma vez.

De toda forma, há de se lembrar que se fingir de morto sempre foi a estratégia mais utilizada pela vida para se perpetuar. Mimetizar a matéria morta, como esses insetos que se fantasiam de galhos podres, deixar-se confundir com o que não se move: se a vida não tivesse a astúcia de, em certos momentos, utilizar as máscaras dos seus contrários, ela não teria se perpetuado. Os que deixam se parecer mortos amam mais a vida do que aqueles que gritam uma vitalidade compulsiva. Pois eles estão dispostos a chegar perto demais  aonde não se chega, apenas para fortalecer o que realmente amam. Não há aço que se produza sem fogo. Há os que gostariam do movimento contínuo, da circulação uniforme da velocidade que cria o homogêneo através da rapidez. Mas a vida freia. Ela para, contrai-se em um movimento implosivo. Tal como os milagres que não se enxergam em Pascal, a vida se impercebe. Uma impercepção soberana, própria de quem não teme desaparecer para aparecer em nova geografia. A vida freia para nos mostrar que seu ritmo nunca aceitará uma só pulsação. Há muitos pulsos que não sabemos ainda como ouvir, pulsos que se contradizem, que se multiplicam e que não se acomodam no mesmo tempo. Isso, os que sabem fingir-se de mortos acabam por, involuntariamente, descobrir. Se todos morressem por um tempo, todos saberiam.

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Governar é fazer desaparecer

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O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Nunca entenderemos o Brasil se não compreendermos o tipo de violência que funda seu Estado. Pois entender como o Estado brasileiro funciona é entender como ele administra o desaparecimento e o direito de matar. Esta é sua verdadeira forma de governo, uma atualização do secular poder soberano e seu direito de vida e morte.

Com uma mão, ele massacra parte da população através de seu aparato policial, a encarcera em um espaço de não direito, permite a criação de zonas urbanas e rurais de anomia nas quais a violência e a morte são invisíveis, nas quais os corpos desaparecem sem deixar restos. Sobre esta parte da população, o Estado não tem apenas o direito de vida e morte, ele tem o direito de desaparecimento. Porque o eixo fundamental do processo de gestão é gerir a invisibilidade. Sobre esta violência, não haverá marcas, não haverá nomes, não haverá imagens, não haverá afeto nem identificação.

Com outra mão, o Estado brasileiro promete a uma parcela amedrontada reunida em condomínios fechados que ele será ainda mais duro contra o crime. Assim, governa-se gerindo a invisibilidade e alimentando uma dinâmica de guerra civil. Alguns países criam unidade através da guerra e da constituição do inimigo externo. O Brasil cria coesão através da constituição de inimigos internos. Por isso, o Brasil não precisa de inimigos. Desde o tempo em que ele se constituiu através de genocídios indígenas nunca reconhecidos enquanto tais, ficou claro que ele próprio já era o seu pior inimigo.

Esta lógica encontrou sua forma mais bem-acabada de governo na ditadura militar (1964-1984). Pois a ditadura militar brasileira foi a consolidação de um modelo de gestão sempre presente na história nacional, mas que a partir de então ganharia estruturas e aparatos institucionais que se mostraram invulneráveis, mesmo em tempo de “redemocratização”. Este é um dos pontos mais impressionantes dos últimos trinta anos no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas de desaparecimento permaneceram intocadas, seja sob os governos FHC, seja sob os governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica de “segurança nacional” que ficou imune a toda revisão. Foi a natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e morte sobre a população que pairou para além das modificações político-eleitorais. Os governos passaram, mas a gestão do desaparecimento ficou.

É importante lembrar-se disso mais uma vez, porque nossa “redemocratização”, a constituição do que chamamos de “Nova República”, foi baseada na tese de que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso, mas necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática eliminando o trauma da violência estatal. Uma violência que aparentemente não teria recorrido à morte sistemática, haja vista os números menores de mortos e desaparecidos se comparados a outras ditaduras latino-americanas. No entanto, esses números escondem uma violência ainda mais brutal. Pois não significa nada dizer que a ditadura brasileira teria matado menos do que vários de seus congêneres latino-americanos. Ela matou menos porque havia alcançado um grau de violência que fez deste tipo de brutalidade algo desnecessário, já que ela foi capaz de aprimorar um regime de violência que outras nem sequer imaginaram ser possível: a violência da certeza da onipotência de um Estado que administra a morte enquanto assina tratados internacionais contra a tortura, que apaga os rastos, que opera por desaparecimento e continuará a operar, seja sob uma ditadura, seja sob uma “democracia”. Uma estrutura imóvel no tempo, resistente a toda e qualquer mudança, indestrutível. Um Leviatã descontrolado sob a capa do Estado de direito.

O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as forças armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar, por exemplo, que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Prova maior da generalização de um modus operandi de exceção agora aplicado de maneira extensiva à gestão social da população. Por isso, atualmente, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua “democracia” como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor protofascista da classe média a clamar nas ruas por “intervenção militar”, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isto demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir.

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