A possibilidade de morrer várias vezes nos livraria de certos medos próprios a organismos que morrem apenas uma vez
Se me permitem, o maior erro da criação foi colocar a morte no fim, como um bloco completo que se manifesta de uma vez. Foi uma ideia ruim, faltou dialética neste momento da criação, é o mínimo que se pode dizer. Alguém deveria ter pensado na possibilidade de se morrer às vezes, várias vezes. Você poderia, por exemplo, morrer durante seis meses e, três anos depois, morrer novamente três semanas. Eu arriscaria dizer que o dito “problema da vida”, toda essa confusão que uma má filosofia popular chama normalmente de “o problema da vida”, resume-se a isto: nos impediram de morrer por um tempo. Então você precisa fazer esta escolha teológica desprovida de sentido: ou escolher viver ou morrer de vez. Que tipo de lógica de oposições é essa? De fato, foi uma decisão de principiante. Morrendo de vez em quando, sentiríamos a vida calar, o sangue parar de circular e deitar em silêncio, o corpo esfriar até o grau zero, os pensamentos se despedirem um por um. Sentiríamos a produção terminar. Sim, veríamos a produção terminar e o desejo ter de dizer: “eis que os objetos se desfazem”. E depois de certo tempo, o sangue voltaria lentamente a circular até encontrar novamente seu pulso, o corpo voltaria a se esquentar e acordaríamos com os lábios voltando a sentir. E teríamos outro ritmo: o ritmo dos que voltaram mais uma vez. E teríamos outro pensar; o pensar dos que um dia morreram e conservaram a lembrança da sua morte, da sua primeira vida, de sua segunda. Isto nos livraria de certos medos próprios a organismos que morrem só uma vez.
De toda forma, há de se lembrar que se fingir de morto sempre foi a estratégia mais utilizada pela vida para se perpetuar. Mimetizar a matéria morta, como esses insetos que se fantasiam de galhos podres, deixar-se confundir com o que não se move: se a vida não tivesse a astúcia de, em certos momentos, utilizar as máscaras dos seus contrários, ela não teria se perpetuado. Os que deixam se parecer mortos amam mais a vida do que aqueles que gritam uma vitalidade compulsiva. Pois eles estão dispostos a chegar perto demais aonde não se chega, apenas para fortalecer o que realmente amam. Não há aço que se produza sem fogo. Há os que gostariam do movimento contínuo, da circulação uniforme da velocidade que cria o homogêneo através da rapidez. Mas a vida freia. Ela para, contrai-se em um movimento implosivo. Tal como os milagres que não se enxergam em Pascal, a vida se impercebe. Uma impercepção soberana, própria de quem não teme desaparecer para aparecer em nova geografia. A vida freia para nos mostrar que seu ritmo nunca aceitará uma só pulsação. Há muitos pulsos que não sabemos ainda como ouvir, pulsos que se contradizem, que se multiplicam e que não se acomodam no mesmo tempo. Isso, os que sabem fingir-se de mortos acabam por, involuntariamente, descobrir. Se todos morressem por um tempo, todos saberiam.
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