Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo 2 de Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian Leverkühn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um rufião ou um marginal. Na verdade, “[…] usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos, ao lado. Em suma um intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre arte e música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades”.
Em suma, um intelectual, mas um intelectual bem específico, desses que têm nome conhecido. Um intelectual com quem a segunda metade do século 20 conviveu de maneira difícil devido à sua consciência crítica, aos seus livros, aos artigos em jornais e às entrevistas no rádio que jogavam uma sombra incômoda na efetividade: Theodor Adorno. Adorno come diavolo, como disse um dia Jean-François Lyotard. Um diabo que não levará Leverkühn ao deserto para tentá-lo com poder e prazer. Os argumentos diabólicos mudaram depois de certo tempo. Agora, sua tentação passa por discussões sobre o “nível geral da técnica de Beethoven”, a função expressiva do acorde de sétima diminuta no começo do opus 111 e de como “cada som traz em si o todo e também toda a história”. Sim, agora o diabo parece ser a voz mais sensata para aqueles que não suportam o estado atual da linguagem, que sabem como: “a situação é demasiado crítica, para que a ausência de crítica esteja à sua altura”.
Mas essa não era a primeira vez que as palavras de um filósofo apareciam na boca deste que tem a força retórica de inverter o sentido de todas as palavras, de embaralhar o sim e o não, de tirar o julgamento do solo seguro onde o certo ainda é o certo e o errado, ainda errado. Essa cena já se repetira anteriormente. O diabo e aquele que procura se afastar das antigas teorias, que sonha em recuperar os frutos da vida, já se encontraram antes. Naquele momento, e vão-se aí duzentos anos, ele não teve problemas em se apresentar com sua alcunha de origem, a saber, “o espírito que sempre nega”. O mesmo espírito que, se não tinha as feições de outro filósofo, tinha certamente seu indefectível sotaque suábio. Antes de encarnar em Adorno, o diabo já aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.
Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são, à sua maneira, bastante aristotélicos. Pois de onde viria essa peculiar tendência de associar a dialética nascente em seu território a uma atividade infernal, se em algum momento eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica de Aristóteles? Desde Aristóteles, aquele que acredita poder suspender o princípio de não contradição só pode nos convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética, é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura capaz de responder a exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe. Goethe e Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, Adorno foi convidado a aparecer ao mundo não apenas como “em suma, um intelectual”, mas como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação determinada”, como dizia Habermas, Adorno nunca ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados, só poderiam expressar o niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que seja ao inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois se o diabo é um desses fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma generosa. Ele pode ser, por exemplo, esse lugar no qual a ruína parece eterna e insuperável, no qual estamos condenados a cantar a cantinela triste da finitude, lugar no qual as condições da práxis transformadora encontram-se, por isso, completamente impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa.
Surgir e passar que não surge nem passa
Bem, talvez tenha chegado a hora de se perguntar sobre o que aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no que diz respeito a Adorno, mas principalmente no que diz respeito à dialética. Erro que não seria simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como “A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários, quanto são negativos e evanescentes”.
Esse delírio báquico, em que não há membro que não esteja ébrio, só pode aparecer para certo senso comum como palavreado de quem quer criar movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas desaparecimentos, mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No coração dessa dialética delirante, encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os pensamentos determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a filosofia, ao menos essa que a dialética defende, não seria exatamente o discurso daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disso que nos permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte regulador da crítica. Talvez isso explique por que as paradas finais da dialética sempre foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isso se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do conceito.
Mas se a dialética prescinde de um mundo, ela não deixa de se debruçar sobre os fatos mais concretos da existência: da economia política à literatura, dos dados da natureza à indústria cultural. Talvez seja mesmo o caso de dizer que ela só pode se debruçar sobre os fatos mais concretos porque ela pode abandonar toda e qualquer Weltanschauung. Pois quando não se precisa mais de um mundo, podemos enfim ver a processualidade infinita que anima o movimento do que aparece, deste “surgir e passar que não surge nem passa”. E talvez ninguém mais do que Adorno foi sensível ao fato de que a liberação da processualidade do interior de uma totalidade que cabe em uma Weltbild era a condição para a intelecção clara da produtividade do pensamento. Talvez a essência de sua experiência intelectual esteja exatamente aí, nessa tentativa de pensar a processualidade de forma imanente, seja por meio da reconstrução filosófica da dialética, seja por meio do demorar-se diante dessa arte do tempo por excelência que é a música.
É possível que alguém possa estranhar o fato de se falar em produtividade do pensamento quando se é questão de uma dialética negativa. Adorno sabia do passo que dava ao afirmar que a dialética não deveria mais ser compreendida como dialética idealista, nem como materialismo dialético, mas como essa estranha alcunha de dialética negativa: “A formulação ‘Dialética negativa’ vai contra a tradição. Desde Platão a dialética procura estabelecer algo de positivo através do pensamento (Denkmittel) da negação; figura que uma negação da negação posteriormente nomeará de maneira pregnante. O livro [no caso, Dialética negativa] gostaria de livrar (befreien) a dialética desta essência afirmativa, mas sem nada perder em termos de determinidade”.
Livrar a dialética da sua essência afirmativa sem nada perder em termos de determinidade. Uma função não exatamente evidente que passa por compreender de forma totalmente nova o que pode ser “determinar algo”. Determinar é predicar algo com atributos diferenciais capazes de identificar um termo, é definir sua polaridade com seu contrário, é adequar a experiência da coisa aos limites do que pode ser representado? Na verdade, todo o problema, e ele está longe de ter sido realmente resolvido, passa por definir o que significa uma atividade que tem sua força motriz na capacidade de negar a si mesma. Ela nos permite começar a pensar o que significa algo que poderíamos chamar de “determinação instável”, pois determinação que não se define por meio de alguma diferenciação ontologicamente assegurada, mas que sempre se desloca devido a um movimento interno no qual sua abertura nunca se esgota por completo.
Houve um momento em que a dialética precisou colocar tal força motriz em evidência, levá-la à frente de forma incondicional se quisesse dar ao pensamento as condições de sua produtividade. Porque, de acordo com o momento histórico, a dialética não teme em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige uma certa plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se produz por meio da definição normativa do dever-ser, e ninguém menos do que Hegel recusou tal ideia. Ela se produz a partir do reconhecimento do desconforto em relação aos limites da situação na qual os sujeitos da enunciação se encontram. Por isso, ela nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte normativo que a legitima.
Nesse sentido, liberar a dialética de sua essência afirmativa nunca foi, como alguns gostariam de acreditar, perpetuar a eterna melancolia dos que só veem possibilidades que nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo impede toda a reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século 20 exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu uma ontologia da inadequação. Há um equívoco fundamental de setores importantes da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa. Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade em Adorno é forma de não esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos esclarece de onde a existência retira sua força para se mover.
Se tal latência deve ser compreendida como negatividade, ou se quisermos utilizar o termo adorniano mais preciso como “não identidade”, é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se sedimentar como presença. Essa é uma ideia fundamental da dialética: começa-se pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo. O que não poderia ser diferente, já que a inflexão marxista da dialética adorniana, e nesse ponto a influência de História e consciência de classe, de Lukács, não é negligenciável, deu-lhe a sensibilidade de perceber como a crítica ao capitalismo não poderia ser apenas crítica aos processos de pauperização social e de concentração econômica produzidos pela dinâmica de autovalorização do capital. Ela deveria também ser crítica à “estética transcendental” do capitalismo contemporâneo, ou seja, crítica a seu modo de unificar o espaço por meio da intercambialidade, de esvaziar o tempo de suas distinções qualitativas, prensando-o em uma pulsação de aceleração/desaceleração infinito ruim e, assim, de controlar a vida ao definir a forma geral do que pode ser experimentado e desejado. Esse modelo de racionalização é o regime de determinação das condições de possibilidade do existente e contra ele a dialética um dia compreendeu que precisaria saber mobilizar as forças diabólicas do grau zero da determinação.
Questão de método
A partir disto, o pensamento pode se mover acreditando que o sofrimento diante das limitações produzidas por formas hegemônicas de pensar o tempo e o espaço já traz, em si, a produtividade do que potencialmente se orienta em novas direções. Por isso, um pensamento que aceita a processualidade contínua, como gostaria de mostrar ser o caso de Adorno, terá no seu bojo o desejo de reconfigurar por completo a noção de “presença” e, por isso, de temporalidade. Reconfiguração que não pode ser resultado de uma espécie de procuração filosófica. Não é uma decisão filosófica, seja por meio do recurso a uma crítica do conhecimento, seja por meio do recurso a uma ontologia renovada, que impõe o modelo de tal reconfiguração. O que não poderia ser diferente para alguém que inicia sua carreira filosófica afirmando: “Quem escolhe atualmente por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde o começo a ilusão que inicialmente animava os projetos filosóficos: a de que seria possível apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen) através da força do pensamento”.
Isso talvez nos explique uma questão de método a respeito da produção adorniana. Poucos foram os filósofos que, durante o século 20, saíram tanto do campo estrito da filosofia. Mesmo que a produção adorniana seja marcada por monografias filosóficas (sobre Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Hegel, além de cursos e textos sobre Kant), o que mais impressiona foi seu desejo em confrontar-se continuamente com campos empíricos como a sociologia, os estudos de mídia, a crítica literária, a psicologia social, a psicanálise e, principalmente, a crítica musical. Isso diz muito a respeito de como pensa aquele que pensa como filósofo. Lembremos desta afirmação do jovem Adorno: “Plenitude material e concreção dos problemas é algo que a filosofia só pode alcançar a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura. Os problemas filosóficos se encontram continuamente e, em certo sentido, indissoluvelmente encerrados nas questões mais determinadas das ciências particulares”.
Isso talvez explique um pouco porque metade da obra de Adorno versa sobre seus textos dedicados à estética musical e à experiência estética. Alguns poderão ver nisso a manifestação de certo derrotismo de alguém que, não acreditando mais nas possibilidades de transformação política global, encerra-se na contemplação das obras de arte mais avançadas de seu tempo. Esse esquema da reflexão estética como prática compensatória às desilusões diante da pretensa impossibilidade da ação revolucionária é, no entanto, ruim. Ele expressa um desconhecimento da maneira com que a experiência estética corrói paulatinamente a sensibilidade hegemônica, abrindo o caminho para a renovação da experiência social por meio da sensibilização a novas formas e modos de organização. A noção de práxis dos detratores da força transformadora da produção estética é limitada e não esconde uma antiga desqualificação filosófica pelas artes. A escuta das transições ínfimas de Alban Berg e a meditação sobre o estilo tardio de Beethoven são apenas alguns dos exemplos mais visíveis da capacidade das obras de arte em transformar a desorganização em força produtiva, a negação das aspirações funcionais da forma em modo de construção de novas formas. No fundo, Adorno age como quem diz: são as obras de arte que, no final das contas, nos ensinam para onde a dialética pode nos levar.
Vladimir Safatle é filósofo e professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP
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