por Vladimir Safatle
De fato, talvez tudo tenha começado diante de um corpo morto. Há de se imaginar este momento: pela primeira vez, alguém não era indiferente diante de um corpo morto. Uma indiferença que, no entanto, era de outra ordem do que a simples tristeza. Diante do corpo inerte de quem até então era objeto de afeto, alguém quis, pela primeira vez, lutar contra o tempo e seu cortejo de perdas. Aparecia assim uma tristeza que, pela primeira vez, portava algo mais do que tristeza. Ela portava a afirmação soberana da memória.
Negar a perda através da memória: não bastava que isto fosse uma operação defensiva. Ela deveria ser a realização de um destino. Pois defender-se da perda através da memória é como permanecer sempre no mesmo lugar, permanecer lá, no descampado diante do corpo morto. Mas afirmar que a memória realiza um destino é algo totalmente diferente. É como afirmar que as pessoas existem para habitar a memória de outros, para fazer dos outros o palco de uma existência que não é apenas a presença de um indivíduo, mas o emaranhado bizarro de vários outros. Um pouco como o conselho que a jovem Eugénie recebe em A filosofia na alcova, de Sade: “Se você quiser ser imortal, transe com o maior número possível de pessoas, pois estes nunca te esquecerão”. Há de se admirar da ironia de um libertino que, no fundo, quer realizar o desejo religioso de redenção da carne, mas através da carne. Ironia de um libertino que, no fundo, quer transfigurar o ato de fazer sexo em maneira de se entregar à memória do outro. Há de se agradecer a Sade por isso.
Mas, se a memória é esta realização de um destino, então devemos dizer que tal destino começou a se realizar quando, pela primeira vez, alguém sentiu a angústia diante do corpo morto em decomposição, diante da potência desfiguradora do tempo. Pois havia uma imagem que não deveria ser apagada. Ela deveria permanecer. Para tanto, o tempo que desfigura deveria ser remetido à invisibilidade, sumir dos olhos de todos. Como se agora fosse possível separar a impermeabilidade da imagem e a porosidade dos corpos. Foi assim que talvez, pela primeira vez, alguém teve a ideia de enterrar um morto. Deveríamos agradecer também à potência criadora da angústia por isso.
Quando os mortos começaram a ser enterrados, a memória pôde aparecer como um peculiar luto criador. Não o luto como fixação que me leva a internalizar o objeto perdido, como quem internaliza uma sombra sobre o Eu. Mas o luto como a primeira condição da linguagem. Sem luto, não se fala, pois não se eleva as coisas à condição de signos. Assim, se quisermos continuar esta antiga tradição filosófica que especula sobre a gênese da linguagem, poderíamos dizer que a linguagem nasceu quando os mortos começaram a ser enterrados.
Um dia, Alexandre Kojève (no fundo, alguém melhor do que muitos de seus críticos) disse que “a palavra é o assassinato da coisa”. Maneira de lembrar como falar realiza melhor sua essência quando a fala se coloca como o ato de enterrar coisas, de deixar a presença das coisas morrerem para que elas habitem um universo no qual nada nunca passa completamente. A linguagem sempre realizará seu destino quando ela lembrar como sua essência está no enterro, e como o enterro é o ato maior de revolta contra a surdez devoradora do tempo.
Alguns podem achar este pathos da linguagem e da morte uma espécie de Blanchot piorado. Estes tem um pedaço de minha consideração. Afinal, sempre há alguém a achar que os momentos de espanto do outro são, no mais das vezes, expressões de um maneirismo que perdeu sua vergonha. Mas deixar de escrever este artigo seria levá-los mais a sério do que merecem. Além do que, a verdade nunca economizou maneirismos.
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