por Peter Pál Pelbart
É um dos grandes méritos desse livro conseguir formular com clareza e coragem que o tabuleiro psicopolítico sobre o qual ainda jogamos nossas peças, com seus atores, papéis, movimentos, estratégias, esgotou-se, pois repousa sobre o medo esse afeto que funda nossa sociabilidade, bloqueia nossa capacidade de ser afetado, gera o temor da desagregação, e fatalmente engendra um investimento compensatório em figuras de autoridade, segurança, proteção, identidade. A “angústia da perda do amor” engendra as subserviências mais abjetas. É uma “mutação dos afetos” que hoje se requer. Portanto, uma capacidade de ser afetado, diz o autor espinosanamente, única via para construir um outro plano para o pensamento e a ação. Mas não é Espinosa, o filósofo, que mais inspira esse livro, e sim Freud. Foi ele quem pensou o desamparo de maneira original. Longe da mera dependência devida à prematuração do bebê ao nascer, longe da incompletude funcional e insuficiência motora, o desamparo tal como aqui é concebido alude a uma assimetria inaugural, onde uma experiência de indeterminação na relação com o outro, próxima de um excesso, ali onde, como no trauma, diante de uma intensidade transbordante, as reações disponíveis já não bastam, advém uma espécie de impotência, de suspensão. É nessa região, nesse estado, que os possíveis já não se atualizam e outra coisa, antes não vivida e não experimentada, pode acontecer. Essa aposta na positividade da insegurança existencial ou ontológica, ali onde algo nos vem de fora ou do outro, e é incontrolável, não desemboca na autoculpabilização, na melancolização, na sujeição infantilizada, como no fascismo que Adorno analisou ou no fascismo virtual que habita nossas democracias, e que um atentado é suficiente para pôr em marcha, como se viu recentemente. Trata-se, ao contrário, a partir dessa não coincidência consigo mesmo, de dissolver inclusive a ideia unitária de povo, de identidade coletiva, fundada num território, numa autoridade ou numa “narrativa fundacionista ou redentora”, sempre cúmplice do culto do Estado. Assim, o desamparo como exposição à alteridade implica uma afectibilidade, e por conseguinte, uma outra lógica do liame social – um outro circuito dos afetos.
Se o desamparo, na esfera social, econômica e até nacional costuma ser fonte de medo e angústia, que dispara as fantasias de segurança, autoridade, justificando em última análise toda uma biopolítica securitária, mas também identitária, como se viu recentemente na reação francesa aos atentados de Paris, o pulo do gato do livro é fazer do desamparo, deslocado de sua conotação sociológica e resgatada ao campo psicanalítico, a afirmação da contingência e da errância, acompanhando os efeitos daí advindos na esfera de uma teoria do poder. Nesse salto político-filosófico, o desamparo deixa de ser algo contra o qual cabe lutar, para tornar-se uma dimensão que se deve assumir, o que permitiria que o embate na esfera política não mais se assentasse na autovitimização e na reivindicação infindável de reconhecimento e reparação, como é o caso em muitos contextos, para dar lugar a outra coisa.
Mas o que implica o desamparo, no sentido em que o entende o autor? Na experiência de despossessão, de indeterminação, de dissolução da identidade; em outros termos, é aquela experiência através da qual o sujeito, individual ou coletivo, se libera do que antes o qualificava, o unificava, o representava, o tipificava. O autor designa isso que ele postula o horizonte antipredicativo de reconhecimento, onde o reconhecimento não passa pelo predicado de quem está em cena. Assim, recusa-se tanto a “afirmação da identidade”, tão em voga, quanto o “reconhecimento das diferenças”, igualmente predominante. É óbvio que ambas se equivalem: a afirmação das identidades e o reconhecimento das diferenças – Deleuze já fustigava o reino das diferenças constituídas, que não passam de identidades contíguas, “conciliáveis e federáveis, longe das lutas sangrentas”. Num espírito deleuziano, eu diria que Vladimir reivindica uma zona de indiscernibilidade, de indiferença, onde o homem se livra de suas “propriedades”, de suas “particularidades” – é o que a filosofia política contemporânea mais ousada não cessa de reivindicar, a singularidade qualquer.
Tudo começa num “corpo capaz de produzir afetos que nos despedaçam” – corpo turbulento, des-orgânico, acrescenta ele, que requer um tempo seu – devir sem tempo, temporalidades múltiplas, heterogêneas, incomensuráveis, uma indeterminação espectral, acontecimentos impredicáveis inaugurando processos singulares. Como dirá o autor: “Quando abrirmos as portas do tempo com suas pulsações descontroladas e anômalas, suas múltiplas formas de presença e existência, então conseguiremos mais uma vez explodir os limites da experiência e fazer o que até então apareceu como impossível tornar-se possível”.
Nada disso é um libelo metafísico ou um psicologismo aplicado à política, mas uma intervenção na mais viva concretude de um contexto neoliberal e biopolítico onde o biopoder não se exerce apenas sobre corpos e mentes, gestão da população, da vida e da saúde, do tempo e de sua rentabilização, porém mobiliza e expropria a libido, calibra o medo e a esperança em meio à desregulação e a flexibilização generalizadas, introduz a lógica empresarial na gestão de si, cobra o gozo incessante, ou seja, modula as formas de vida numa intensificação infinita porém contábil, no que o autor chama, inspirado em Bataille, porém numa chave crítica, de “subjetivação do excesso”. É nosso indivíduo neoliberal, sedento de reconhecimento, mas espoliado do estranhamento – é esse estado de coisas que cabe analisar e desmontar, mesmo no campo do trabalho, onde já não se trata da produção do próprio dirigido a um outro, porém do impróprio, do sem propriedade, do sem destino, do sem utilidade, do sem valor de troca – a vida do gênero, o comum inapropriável, diria Agamben, entrecruzado com um Bataille revisitado, o da soberania como desperdício. É o esgotamento de uma certa ética protestante do trabalho, mas também de certa lógica da finalidade e da finalização. Como poderíamos discordar disso tudo? É tudo tão forte e bonito, tão articulado, tão pertinente, tão urgente!
Mas não pense o leitor que isso se desdobra com naturalidade. Os golpes que esse livro teve que aplicar para chegar a tal resultado são tão surpreendentes quanto seu resultado. Virar Hegel do avesso para mostrar que a dialética está muito mais próxima da ruptura, da descontinuidade, do esquecimento do que da teleologia que seus críticos lhe imputaram – inclusive mais próxima da diferença, pensada radicalmente. Lembrar que dar o que não se tem, em Lacan, nada tem a ver com falta ou carência, mas com desmesura, indiferença à medida, circulação do incomensurável. A irritação com as interpretações simplistas de Hegel ou Lacan ou Adorno, os coices que o livro distribui a torto e a direito são saborosos. Laruelle notou que o Negativo, predominante no século 19, foi substituído pela Diferença – paixão da Diferença. Mas na contracorrente, é como se Vladimir reintroduzisse a urgência da negatividade. Um leitor de Deleuze como eu poderia se sentir visado ou rechaçar alusões várias, claro, se fosse torpe e não sentisse que se trata de uma negatividade transmutada, para além de Hegel e mesmo de Adorno. Também poderia sentir-se espantado com a quantidade de Badiou espalhada pelo livro, ou de um Zizek levado tão a sério, ou mesmo de um Axel Honneth a quem é dedicado um capítulo inteiro. Às vezes tem-se a impressão que depois que alguns gigantes da filosofia faleceram, os anões criaram coragem para subir ao palco e fazer grande estardalhaço, desafiando e zombando dos gigantes desaparecidos. Mas isso tudo já não diz respeito ao livro, e sim ao circo filosófico contemporâneo. Felizmente, o livro dista mil léguas disso tudo.
Pois ele não se satisfaz com o que se diz sobre os autores supostamente ultrapassados, que assume o risco de virar do avesso as interpretações consagradas, que ousa sustentar uma perspectiva contraintuitiva a respeito de tudo, que não trabalha por filiação – tudo isso é salutar. E quando segue as implicações concretas de suas apostas teóricas, não tem medo de ir até o fim, num frutífero diálogo com Butler ou Agamben. Por exemplo, que a inscrição jurídica dos direitos das minorias, sem dúvida necessária num primeiro momento de afirmação identitária, pode implicar ulteriormente um controle biopolítico, no interior de uma gramática que incorpora as predicações autoproclamadas – catalogando as sexualidades, por exemplo, é preciso relembrá-lo sempre, mesmo que tais minorias se sintam com isso ofendidas. Daí a reivindicação de Agamben, tão aguda e necessária quanto difícil de ser imaginada, por uma vida para além do direito, ou o privilégio que atribui à destituição ou à desinstitucionalização, na contramão de tantas correntes, também progressistas.
Mais surpreendente, porém, é que ao lado dessa teorização tão radical, se enuncia a intransigente defesa da regulação econômica, para escândalo de um pós-modernismo que finge que o social é apenas uma miragem, ou que teríamos entrado numa era pós-política. Sim, a regulação econômica, sem que ela se faça acompanhar de uma regulação das relações sociais, inclusive naquilo que tange às relações familiares ou amorosas. Pois se a política é indissociável dos afetos, é justamente na medida em que eles vazam os contornos do que deve ser institucionalizado, codificado. Daí a liberdade e mesmo a necessidade de se falar até do amor, não como ágape, não como filia, mas outra coisa. Vladimir tem a ousadia de tratar disso com a fineza que raramente se encontra num tratado político: não se trata de uma relação intersubjetiva, não há dois indivíduos, nem fusão, nem contrato, nem reconhecimento de “propriedades”, nem “fetichismo da pessoa”, nem sistema de trocas, mas circulação de dons que quebram a reciprocidade, na gratuidade, numa destituição subjetiva que é impensável sem o corpo. Vladimir diz, com muita precisão: “Não será com os mesmos corpos construídos por afetos que até agora sedimentaram nossa subserviência que seremos capazes de criar realidades políticas impensadas. Mais do que novas ideias […], precisamos de outro corpo […]. Pois nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre”.
Como não ouvir aí um belo eco de Artaud? Mas Vladimir é mais sóbrio, e cita seu livro anterior, Grande Hotel Abismo: “Que afetos podem levar indivíduos a se implicarem com o que não tem a forma da pessoa, do Eu e nem a forma do comum, do que fundaria uma partilha do comum, mas com o que tem a forma do impróprio, do que funda uma partilha baseada no que não se configura nunca como minha propriedade?”. Ou seja, prossegue ele, que afetos criam sujeitos? Que afetos impulsionam os indivíduos, que acreditamos um dia dever ser, à dilatação produzida pela implicação com a desmesura que funda todo sujeito? Este é o problema central deste livro.
Desmesura como fundamento – é Bataille? É Heidegger? É um Nietzsche oculto e quase não citado? Ou é um Lacan revisitado, livrado da ortodoxia de seus seguidores? Em todo caso, ao descartar as noções de beatitude, de contentamento ou de felicidade, o autor explica que “para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se”. Não é o elogio da frustração, mas de se relacionar “àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar causar por aquilo que despossui o Outro. No desamparo, deixo-me afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar no Outro, algo que desampara o Outro”. Heteronomia sem sujeição. Ou, dito de outro modo, e mais belamente: “Amar alguém é amar suas linhas de fuga”.
Um leitor sensível ficará atento à ressonância deleuziana dessa fórmula, apesar de sua matriz lacaniana. Isso acontece amiúde, e não se deve a uma operação de despiste, mas a um pluralismo presente no Vladimir, que às vezes suas referências mais frequentes encobrem. Por isso, aconteceu-me coisa muito diferente do que concordar ou discordar. Eu me diverti com os golpes e contragolpes, talvez porque menos preso à questão da identidade dos autores visados ou celebrados do que à trajetória empreendida. E ao mesmo tempo em que acompanhava a problemática, o diagnóstico, a aposta teórica ou prática desdobrada, ocorreu-me reescrever mentalmente o mesmo livro a partir das minhas fontes mais familiares, sobretudo Nietzsche, Blanchot, Simondon, Deleuze-Guattari. Em outras palavras: a morte de Deus ou do homem, o Fora e o Desastre, a Individuação, os Agenciamentos de Desejo. Não vou cometer a indelicadeza de insistir nisso, é apenas uma confissão entre amigos.
Eu diria que é de uma política da existência que trata o livro do Vladimir. Ao partir do que ele chama de espoliação psíquica do estranhamento, estamos embocados numa posição do problema das mais agudas, sulfurosas e promissoras. Pois ao reintroduzir o estranhamento no pensamento político, tão repleto de polaridades caducas, faz transbordar nossa racionalidade calculante em direções indeterminadas e não prescritivas – já que a vida, retomada, como diz o autor, em sua voltagem especulativa, está próxima do que Foucault enxergou em seu último texto sobre Canguilhem: erro, errância. Vida errática, não viril, não plena, sem fundamento, excentrada, abrindo a via para uma biopolítica vitalista mais hesitante do que tonitruante, que desbarata todo fundamentalismo, totalização, finalização. No contexto atual, saturado de catastrofismo e salvacionismo, esse livro reintroduz a contingência, a suspensão, a deiscência, a disjunção, mesmo a queda, contrarrestando a performatividade do Capital que se apossa do pensamento e de sua potência. Assim, ele nos ajuda a respirar de novo, a pensar o novo.
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