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Dando corpo ao impossível

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“O que poderia ser a necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura são fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema? A antiga superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade? Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?” Stalin, Marxism and linguistics.

Estas são palavras de Josef Stalin a respeito de um debate que marcou época na antiga URSS. A questão girava em torno da relação entre linguagem e revolução. Uma revolução política modifica ou não a estrutura da linguagem? Seria a linguagem uma superestrutura transformada quando rupturas sociais fundamentais ocorrem? Como se vê, a resposta de Stalin é negativa. A vida da linguagem passa ao largo das transformações econômicas e sociais. Ele parece ter uma espécie de neutralidade política. Pois destruir uma linguagem existente e construir uma nova em seu lugar só poderia implicar a anarquia da vida social e a ameaça de desintegração da sociedade.

No entanto, de certa forma, Stalin tinha razão. Há uma anarquia, uma quebra da arché, uma eliminação da ilusão da origem e do fundamento quando uma linguagem entra em dinâmica de ruptura. Poderíamos partir desse ponto a fim de nos perguntarmos sobre em que condições paralisações políticas ocorrem. Por que há momentos nos quais a imaginação política parece entrar em compasso de bloqueio, nos quais, mesmo sendo atravessada por descontentamentos profundos, revoltas de toda ordem, sociedades parecem não ter mais força para se transformar? Não seria exatamente porque há uma linguagem nova que deveria emergir e, no entanto, ela não emerge, ou seja, a linguagem não aparece como motor de transformação política?

Comecemos por uma questão de princípio. Pois nos perguntemos pelas condições de possibilidade daquilo que podemos chamar de lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e conflitos que fornecem a base da experiência política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presença de experiências de sofrimento social e injustiça. Façamos uma questão ainda mais elementar, a saber, como sociedades traduzem experiências de sofrimento social, como elas interpretam processos de injustiça. Pois há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de “interpretação” e “tradução”. Podemos sentir sofrimento, mas há um exercício suplementar que consiste em traduzi-lo sob a forma de uma demanda social, interpretá-lo sob a forma de ações coordenadas. Uma sociedade é fundada, entre outras coisas, em uma gramática de inscrição de experiências sociais de sofrimento em modos específicos de articulação de demandas.

Insisto nesse ponto porque creio que se trata de salientar a existência de algo que poderíamos chamar de “gramática social de conflitos”. Essa gramática é a condição de possibilidade para toda experiência política. Tal gramática determina a forma possível das demandas e das lutas, ela configura a estrutura dos sujeitos políticos e define as modalidades gerais de agência possível. Na verdade, tal gramática determina os limites do que é possível e do que é impossível para uma sociedade realizar e imaginar. A gramática define o que pode ser ouvido e percebido, o que pode nos afetar. Neste sentido, ela é similar a uma gramática linguística, com sua sintaxe, sua semântica, seus princípios gerativos.

Chamo atenção para esse aspecto porque uma questão fundamental consiste em se perguntar sobre qual gramática social de conflitos respeitamos, qual gramática configura a forma da nossa revolta. No fundo, continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos normais de funcionamento dos nossos vínculos sociopolíticos. Por isso, as demandas de ruptura que enunciamos tendem a reiterar os modos gerais de determinação social. Nós falamos a mesma linguagem daqueles contra os quais nós nos batemos. Por isso, podemos dizer que há uma gramática que se fortalece agindo em nós, agindo através de nós, mesmo quando parecemos encenar nossa revolta e desejo de ruptura. Vladimir Maiakovski dizia que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante: não há política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Forma capaz de romper a gramática social de conflitos hegemônica em sociedades determinadas.

Para rompê-la é necessário apoiar-se naquilo que é gramaticalmente impossível, fazer circular enunciados políticos gramaticalmente impossíveis que constituem enunciadores emergentes. Nesse sentido, uma questão fundamental seria: o que na atualidade é gramaticalmente impossível de enunciar? É em direção ao ato de dar corpo ao impossível que caminha a emergência dos processos de transformação social. Pois é possível que enunciados impossíveis sejam atualmente aqueles que são falas desprovidas de lugar, que abrem um campo de implicação genérica na qual todo e qualquer pode assumir tal fala. Elas são falas marcadas por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja emergência destitui as formas atuais de presença e existência.

O post Dando corpo ao impossível apareceu primeiro em Revista Cult.


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