Se aceitarmos que o Brasil vive o término do ciclo histórico da Nova República, teremos que admitir que um dos principais sintomas de tal esgotamento é o fim de toda possibilidade de governo. O Brasil é hoje um país ingovernável. Enganam-se aqueles que veem tal impossibilidade de governo como resultado de falhas institucionais sanáveis através de um conjunto pontual de reformas políticas que afetariam, principalmente, os processos eleitorais. Não, o Brasil não precisa de uma “reforma política”, mas de uma refundação institucional.
A Nova República nasceu de um sistema de pactos e paralisias que não existe mais. Ela foi a forma maior de uma era de acordos e conciliações que perpassaram nossos últimos trinta anos. Nesse sentido, nosso dito presidencialismo de coalização não foi uma distorção institucional própria a uma democracia parlamentar incipiente. Ele foi a expressão mais bem acabada de uma necessidade de fato, a saber, a necessidade de submeter todo ímpeto político de transformação às amarras de um sistema de alianças que visava moderar e limitar, paralisar e travar.
Assumir que o Brasil saiu do horizonte histórico da Nova República implica compreender a natureza das tarefas políticas que se colocam atualmente para nós. Se não é possível mais governar o Brasil, então há de se aproveitar o momento e insistir na necessidade de superar uma noção de governo baseada na representação, na constituição de corpos técnicos do Estado e em um sistema de balança entre três poderes.
É fato que tal chamado à superação pode parecer estranho para alguns. Pois representação, tecnocracia e check and balance parece completamente natural e expressão imediata de um comprometimento com a democracia. Alguns poderiam inclusive falar que o Brasil não deveria tentar abandonar uma democracia parlamentar que nunca funcionou de forma condizente em suas terras, mas deveria enfim procurar efetivamente implementá-la.
No entanto, notemos a oportunidade histórica que se desenha. O Brasil entra em esgotamento institucional exatamente no momento em que a democracia parlamentar começa a ser questionada em várias partes do mundo por sua fragilidade diante da luta contra processos de espoliação econômica e de controle da força do poder do sistema financeiro mundial. Não por outra razão, a política mundial atual precisa lidar com a recrudescência de demandas anti-institucionais.
Alguns podem ver isso como uma regressão social vinculada ao retorno de formas de “populismo”. No entanto, tais demandas anti-institucionais, bastante presentes na realidade brasileira atual, podem se tornar o germe de formas renovadas de radicalização democrática. Não deixa de ser sintomático neste sentido que, quando colocamos tal possibilidade na mesa, aparece normalmente uma forma de demissão intelectual singular expressa na recusa tácita em pensar as modalidades possíveis de tal radicalização. Como se a imaginação política não quisesse ir em direção à procura por experiência e exemplos que nos mostrariam o caminho para uma reinstauração institucional do poder político nacional.
Por exemplo, sabemos que uma forma de dar apenas a aparência de aprofundamento democrático é a proliferação de conselhos setoriais com função meramente consultiva. Vimos tal política ser implementada principalmente nos dois governos Lula sem que ela se traduzisse em mudança efetiva nas dinâmicas do poder. Pois mais do que reduzir a força da deliberação popular à condição de aparato consultivo, trata-se de permitir ao poder popular exercer-se em sua capacidade de veto, deliberação e gestão. Lembremos a esse respeito como a constituição islandesa previa que a manifestação de 10% dos eleitores poderia obrigar que toda lei aprovada pelo Parlamento fosse suspensa e objeto de referendo popular. Ou seja, a população poderia obrigar o Parlamento a referendar suas leis através de plebiscito. O que significa uma forma astuta de impedir que os “representantes do povo” decidam contra seus próprios “representados”. Nós poderíamos utilizar tal princípio e tirar do Congresso a atribuição de emendar e modificar a Constituição, exigindo que toda reforma da Constituição só tenha validade se aprovada em referendo.
Por outro lado, cabe a um processo de radicalização democrático procurar fornecer à deliberação popular o poder imediato de gestão, tirando o monopólio de tal poder das mãos do corpo gerencial do Estado. Isso nos levaria a defender que o Estado deve decidir suas políticas públicas a partir das decisões tomadas por conselhos populares setoriais e por conselhos populares locais. Tais conselhos teriam como função maior livrar o Estado da tecnocracia e do poder dos lobbies, submetendo-o ao reconhecimento da inteligência prática das classes trabalhadoras.
Pois um dos elementos fundamentais do poder de Estado é a desqualificação contínua do que poderíamos chamar de “inteligência prática” daqueles envolvidos diretamente no processo de trabalho. Por exemplo, em uma democracia radical, a política federal de educação seria de decisão do Conselho Setorial de Professores. O governo federal apresentaria ao Conselho uma proposta que poderá ser homologada ou modificada pelo Conselho que, por sua vez, será composto de todos os professores vinculados ao ensino público. Assim, o corpo gerencial do Estado fica submetido ao poder daqueles que trabalham efetivamente com o processo educacional em seu dia a dia.
Da mesma forma, a política federal de saúde passaria a ser de decisão do Conselho Setorial de Profissionais da Saúde. Um conselho formado por todos os profissionais da saúde vinculados ao serviço público, funcionando nos moldes de Conselho Setorial de Professores. Em todas essas experiências, o Estado deixa de ser uma instância decisória para se transformar em uma instância de reconhecimento de processos de deliberação que se dão em seu exterior sem, no entanto, ser simplesmente a expressão de interesses de mercado.
Nesse momento de questionamento acirrado dos limites da democracia brasileira, cabe àqueles comprometidos com o horizonte de transformação social aceitar o desafio concreto de criar o quadro institucional capaz de dar presença efetiva ao poder popular.
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