É claro que vivemos em um momento histórico de fortalecimento do ceticismo em relação à democracia. No entanto, há de se perguntar se todas as formas de tal ceticismo são meras expressões de regressão social diante da insegurança econômica generalizada e do aumento do medo como afeto fundamental de coesão social. Seriam todas estas formas de ceticismo impulsionadas pela procura por figuras autoritárias de poder capazes de ser a expressão do ressentimento gerado pela experiência da despossessão social e da insegurança? Ou haveria formas de ceticismo em relação à democracia que expressariam algo outro, a saber, o descontentamento com o modo de existência que a democracia liberal procura naturalizar enquanto a forma mesma da liberdade e da emancipação? Como se, neste caso, houvesse um mal-estar vinculado a uma espécie de paradoxo imanente da democracia. O paradoxo próprio a um discurso que promete realizar socialmente a liberdade no mesmo momento em que a impede. Ou seja, partamos da questão: seria possível criticar a democracia, tal como a conhecemos hoje, em nome da liberdade e da emancipação?
Note-se que não se trata apenas de afirmar que a democracia liberal, como a conhecemos, estaria tão articulada à preservação de setores hegemônicos da economia que suas promessas de igualdade nunca poderiam se realizar. Como se uma maior regulação dos agentes econômicos e uma política efetiva de redistribuição pudesse enfim garantir as condições de liberdade social e desenvolvimento das singularidades. Ou seja, como se a crítica a fazer fosse a respeito da extensão da intervenção econômica no campo político.
Trata-se de afirmar algo ainda mais fundamental, a saber, a maneira como a democracia até agora pensou a emergência de seu kratos, a emergência da força, do domínio, da potência que a constitui, desta força que seria atributo do povo e que ela confunde com o próprio exercício da política, impede que algo de fundamental na noção de liberdade se realize. Ou seja, trata-se de afirmar que a própria metafísica interna à concepção de “força” imanente à democracia, ao menos em sua versão liberal, necessita de revisão. Pois é verdade que talvez estejamos a assistir ao fim da força da democracia. Mas é provável que tal fim se confunda também com sua finalidade. A democracia termina não porque foi golpeada de fora, mas porque é vítima de regressões que ela mesma produz em seu funcionamento normal. Mas, com o conceito de força que ela naturaliza, a democracia não poderia ter outro destino a não ser sua própria perda.
Nesse sentido, talvez seja necessário destituir a força da democracia para que outra força emerja de forma tal a realizar o conceito de liberdade, sem que tal realização passe em seu contrário. Mas há de se esclarecer este ponto, pois normalmente afirma-se a necessidade de destituir a força da democracia em situações nas quais se procura defender que tal força seria, na verdade, demasiado fraca. Como se fosse questão de apelar a alguma forma de governo forte marcado pelo decisionismo soberano. Como se o respeito às várias instâncias deliberativas que compõem a democracia só pudesse levar ao enfraquecimento da força política e de sua capacidade de decisão.
No entanto, não é este o caminho que gostaria de trilhar. Na verdade, gostaria de afirmar que o problema da força da democracia não é sua fraqueza, mas a maneira com que ela constitui seus sujeitos. A força é um poder constituinte de subjetividades, de determinação de modos possíveis de ação e reconhecimento, e há de se entender quais formas de subjetividade a democracia, em sua versão liberal, produz e faz circular. Para além da multiplicidade de modos de vida que a democracia permite à existência, há uma repetição que visa dar forma a tal multiplicidade, regulá-la quando ela passa ao campo político, e devemos estar atentos a tais regimes de repetição.
Ou seja, muitas vezes afirmamos que nossa concepção atual de democracia funciona como uma democracia sem demos. Como se o problema fundamental fosse como garantir a emergência do demos, como garantir a afirmação da soberania popular. É isto que as estratégias de reinvenção populista da democracia procuram realizar, a saber, reatualizar os modos de emergência do demos através do uso de processos identificatórios com figuras que conseguiriam representar a heterogeneidade do campo social ao se colocarem como significantes vazios capazes de permitir o basteamento de um conjunto contraditório de demandas sociais. No entanto, insistiria na existência de um problema talvez mais fundamental ligado à necessidade de uma democracia que opere com outra forma de kratos. O problema não é apenas as formas de emergência do demos, mas as modalidade de configuração de sua força. Pois se trata de perguntar: o que pode significar exercitar o poder? Não deveríamos lutar apenas por uma mudança topológica no lugar dos que detêm o poder, mas por uma mudança estrutural na gramática do exercício do poder?
A tese a ser defendida aqui é que a força na democracia, principalmente em sua versão liberal, tem três atributos fundamentais. Primeiro, ela é expressão de uma ipseidade, ela é o exercício de um “estar junto de si e de pertencer a si mesmo”. Como lembrará Derrida, o kratos na democracia é acima de tudo uma ipse. Nesse sentido, ela só pode definir os modos de existência e organizar os regimes de fala a partir dos usos políticos da noção de identidade. As demandas sociais passam à existência como multiplicidade de demandas organizadas em sua enunciação identitária. Assim, mesmo a distinção entre cosmopolitismo e nacionalismo é falsa. Entre um conjunto de identidades em regime de tolerância e uma identidade totalizante não há diferença, há declinações possíveis de uma mesma ipse que pode ser pensada como identidade unitária ou como identidades em multiplicação. Há afirmações da mesma gramática.
Segundo, ela é força que se realiza como plasticidade da representação. A representação é a gramática que define o modo de existência das identidades no interior da democracia, ela é o dispositivo geral de organização do campo do comum. Nesse sentido, mesmo o que acontece em esferas anti-institucionais tende a se realizar como representação, pois, na democracia, só o que é representável pode existir.
Por fim, ela é uma força que legisla sobre os regimes de sua própria suspensão. A democracia é indissociável da internalização de sua própria suspensão legal. Este é um tópico bem explorado por Giorgio Agamben desde seus trabalhos sobre a generalização do uso do estado de exceção como procedimento normal de governo. A democracia não é o regime de garantia da integridade dos sujeitos através do exercício da lei. Ela é o regime que possibilita uma suspensão legal da lei.
Assim, a democracia que conhecemos funda-se em uma noção de força compreendida como o que se exercita enquanto identidade, como o que passa a existência enquanto representação e como o que conserva em si mesmo a violência de sua própria negação sem retorno. Nesse sentido, se estamos a discutir as modalidades de configuração da força própria à democracia, deveremos discutir as possibilidades de superar um exercício político baseado na identidade, na representação e na negação interna de seu próprio ordenamento.
Há várias maneiras de discutir este ponto, mas eu gostaria aqui de explorar uma que diz respeito a uma articulação possível entre democracia e revolução. Pois sabemos como o conceito de revolução é atualmente um conceito que parece esgotado. Eixo fundamental da própria noção de política nos séculos 19 e 20, ele viu, a partir dos anos 1980, seu lugar central no processo de realização das expectativas de emancipação social ser cada vez mais questionado. Este abandono foi feito, muitas vezes, em nome de análises históricas que apontavam para, em larga medida, três fatores, a saber: o fato de os processos revolucionários do século 20 terem rapidamente se transformado em sociedades burocráticas; o fato de não haver mais no horizonte sujeitos políticos capazes de se colocar como agentes naturais da ação revolucionária desde a integração da classe trabalhadora do proletariado ao estado do bem-estar social; por fim, o fato de o conceito de revolução depender de uma filosofia da história de cunho teleológico e necessitarista. Como se a revolução, como forma de insurgência, fosse indissociável da perda de seu elã transformador, a partir do momento em que passasse à condição de governo, ou indissociável de uma teleologia que destrói toda possibilidade de acontecimento em prol de uma filosofia do progresso histórico.
Mas gostaria de insistir que argumentos historicamente situados desta natureza são limitados. Que as primeiras realizações do conceito de revolução tenham se esgotado não implica que estejamos diante de uma limitação imanente à potência do próprio conceito. Da mesma forma que as primeiras atualizações do conceito de república demonstraram-se falhas sem que o próprio conceito de república fosse, por isso, descartado. Para além do problema complexo da violência (até porque, há situações nas quais a insurreição revolucionária tem violência direta meramente residual), deveríamos insistir no fato de haver outra força que a revolução permite emergir e é isto que as teorias atuais da democracia têm dificuldade em aceitar, ou seja, que na esfera do político a primeira transformação necessária seja no conceito de “força”.
Não se trata apenas de pensar a revolução como emergência da força de outros agentes que até então estavam em posição subalterna ou não contada. Trata-se de compreender a revolução, inicialmente, como processo de destituição da própria noção de agência que até agora imperou. Antes de ser uma ação ou um conjunto coordenado de ações, uma revolução é a destituição de certa agência, ela é o abandono de certa ideia de ação e, assim, o fim de certo conceito de sujeito. Por isso, toda revolução é o campo de emergência de uma força até então impossível de passar a existência e de uma subjetividade até então impredicada. É por não saber mais o que tal reinstauração da noção de força pode significar que a contemporaneidade abandonou a noção de revolução e, em seu lugar, o populismo se tornou, entre nós, o único modo de pensar a emergência política de processos anti-institucionais capazes de constituir novos sujeitos.
Nesse sentido, a tese fundamental que gostaria de defender aqui é: o conceito de populismo cresce atualmente por uma dupla razão. Primeiro, devido à consciência tácita, principalmente depois da crise econômica de 2008, do caráter meramente formal da democracia parlamentar diante da necessidade de reinstauração de outra ordem econômica. Desse modo, o populismo, tanto à direita quanto à esquerda, foi capaz de incorporar o descontentamento com a ausência de alternativa econômica em circulação no interior dos embates eleitorais da democracia parlamentar.
Segundo, o populismo voltou a aparecer como alternativa a uma política radical no lugar da necessidade de recuperação do conceito de revolução. Populismo e revolução pressupõem formas de reinstauração institucional. No entanto, há algo que os diferencia, e isto gira em torno do conceito de força em política. O populismo não modifica a noção de força, ele a incorpora em outros sujeitos, em sujeitos até então invisíveis no interior do exercício do poder. Assim, longe de simplesmente desqualificar a estratégia populista de reconstituição da democracia através da emergência do demos, eu gostaria de insistir em seus limites e, diante desses limites, apontar para a necessidade contemporânea de rever o conceito de revolução. No entanto, compreender esse ponto exige responder a uma pergunta que apenas aparentemente é simples e que talvez nos mobilizará nos próximos anos, a saber: o que devemos entender atualmente por “revolução”?
O post A força da revolução e os limites da democracia apareceu primeiro em Revista Cult.