A ascensão do neoliberalismo como política de Estado representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos
Para muitos, o Brasil parece ter se transformado em uma incógnita. Um país que, depois de elevado pela imprensa mundial à condição de potência emergente, virtual quinta economia do mundo, vê-se agora como um território em desagregação acelerada. Um país completamente à deriva. Para outros, ele simplesmente expressa atualmente, de forma mais brutal, os impasses de um processo que deve ser compreendido em sua dinâmica global. Reconstruir o sentido desta dinâmica global é condição necessária para entendermos como um país pode chegar a impasses tão espetaculares em um prazo tão curto de tempo. Pois a história brasileira é, na verdade, o último capítulo de outra história. Ela é o setor mais influente da história latino-americana e esta, por sua vez, está vinculada nessas últimas décadas à ascensão da esquerda ao poder.
De fato, a experiência da esquerda latino-americana no governo nestes primeiros anos do século 21 foi o último capítulo da história da esquerda mundial no século 20. O que podemos chamar de “experiência latino-americana de governo de esquerda” presente nos últimos vinte anos em países como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua, Peru, El Salvador, Haiti e Honduras foi o término de uma longa história mundial marcada pela tentativa de consolidar políticas redistributivas, regulação dos agentes econômicos e fortalecimento de poder popular. Que esta história tenha encontrado na América Latina um de seus terrenos fundamentais, eis algo a ser creditado a uma conjunção de dois fatores.
Primeiro, a América Latina teve um déficit contínuo de integração popular aos processos de decisão política até a década de 1990. Pois esta integração se deu normalmente de forma frágil, pelas vias do populismo, e de forma intermitente, sendo rompida várias vezes pela ascensão de ditaduras militares, em especial no período de meados dos anos 1960 até o final dos anos 1980. A América Latina foi capaz de preservar uma concentração de poder no interior de grupos de elites cujas raízes, muitas vezes, são encontradas ainda nos períodos coloniais. Tais grupos souberam se associar localmente a “formadores de opinião” (como artistas e intelectuais), construir articulações cerradas entre estado-empresariado-imprensa, garantindo assim sua perenidade.
Segundo, enquanto a luta pela integração popular aos processos de decisão política em continentes com a Ásia e a África foi feita no interior de lutas coloniais, a América Latina tinha passado pela descolonização já no século 19. Isto permitiu às lutas populares não serem imediatamente inscritas como lutas eminentemente nacionais ganhando assim, de forma mais clara, a configuração de lutas sociais nas quais questões transnacionais de classe e desigualdade podiam aparecer na linha de frente.
Lembremos então como a experiência latino-americana conheceu, nestas últimas décadas, dois eixos principais. No primeiro, encontramos um modelo de polarização social normalmente marcado por reformas estruturais nas instituições do poder e por processos de incorporação popular populista. Encontramos aqui países como Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua. Este modelo, autodenominado “bolivariano”, vendeu-se como “o socialismo do século 21”, mas foi em larga medida dependente de dinâmicas de constituição de corpos políticos que remetem ao populismo do século 20, com o consequente investimento libidinal massivo em figuras personalizadas do poder, como no caso da Venezuela. Essas dinâmicas identificatórias foram sua força momentânea e sua fraqueza final, pois os processos de identificação personalizada se esgotam no tempo, não podem ser transferidos a outros ocupantes do poder, fazendo da política a gestão contínua do vazio. O caso mais complexo deste grupo, por ser o mais bem-sucedido, é a Bolívia, com sua organização institucional inovadora, seu crescimento econômico ininterrupto e seu conceito de “estado plurinacional”.
No segundo eixo, encontramos um modelo de gestão social marcado, ao contrário, pela conservação de estruturas institucionais próprias à democracia liberal e por processos de incorporação popular também caracterizado como populista. Este é modelo próprio, principalmente, ao Brasil e à Argentina, mas em menor grau ao Uruguai, Chile, Peru, El Salvador e, por algum tempo, ao Paraguai. Tal modelo representou uma experiência retardatária que procurou realizar políticas locais de redistribuição respeitando o espaço político próprio à democracia liberal, acreditando que poderia, de certa forma, repetir determinadas estratégias de gestão da social-democracia europeia do pós-guerra. À exceção do Uruguai, que soube mobilizar pautas de reconhecimento e liberalização de costumes para consolidar adesão popular, e do Paraguai, que sofreu um golpe de Estado parlamentar já em 2012, este modelo entrou em colapso mais ou menos ao mesmo tempo em todos os países. Resultado de políticas pós-ditadura, ele foi uma paradoxal e única articulação entre horizonte de social-democracia e populismo. O que não deveria impressionar ninguém, pois pensar a América Latina exige saber operar com paradoxos, com contradições sem superações.
Seria bom começar nossa análise assim. O Brasil tem uma tendência particular a se ver como a maior ilha do mundo, procurando desenvolver análises de seus processos político-sociais como se sua estrutura causal fosse completamente endógena. No entanto, melhor seria se procurássemos perceber como se dá nosso modo de integração a movimentos globais, não apenas para denunciar como em certos momentos acabamos por mimetizar processos em atraso, mas principalmente por expor as dinâmicas de esgotamento do que outros apenas começam a sentir. Nesse sentido, o fracasso da experiência latino-americana, em especial em seu setor mais avançado, a saber, este capitaneado pelo Brasil, não é apenas algo que diga respeito a uma região periférica do capitalismo mundial. Ele foi a realização paulatina de que o tempo da democracia liberal e de seus acordos já não existia mais. Nós havíamos chegado tarde demais. Por isso, a experiência latino-americana expôs, de forma mais explícita, o que o resto do mundo começará a descobrir de forma dramática.
Não há lágrimas pelo fim da democracia liberal
Neste contexto, lembremos como a democracia liberal, tal qual a conhecemos, é uma invenção recente que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos vitoriosos ao final da guerra. Sua base de sobrevivência foi a capacidade de orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”. Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores do dito Estado de Bem-estar Social. Mesmo os partidos comunistas europeus, fortes até o final dos anos 1970, com votações que podiam chegar a 30% (como no caso do Partido Comunista Italiano), operaram no interior dessa lógica de respeito ao horizonte institucional liberal, retirando de circulação toda luta por mutações institucionais profundas, operando no esquadro de uma “coexistência pacífica”, isto até o momento em que perderam de vez sua força e relevância. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo com vista à liberalização da economia e a desregulamentação gradativa das defesas trabalhistas contra a espoliação. Há de se lembrar que a constituição do Estado do Bem-estar Social foi, de certa forma, uma criação conjunta entre esquerda e direita. Não é possível contar a história da formação do Estado-providência alemão, por exemplo, sem passar pelas políticas implantadas pelos democratas-cristãos, nem contar a história do seu símile francês sem passar pelo gaullismo.
Exatamente por ser uma formação de compromisso, a democracia liberal e seus gestores do Estado do Bem-estar Social estava fadada a durar pouco. Não porque ela produziria letargia econômica e baixa competividade, mas porque o patronato, intocado em suas posses, utilizaria a primeira oportunidade para aumentar rendimentos reduzindo os elementos do custo salarial e criando condições para uma verdadeira reedição dos processos de acumulação primitiva. Ela veio em meados dos anos 1970 através de uma conjunção improvável entre crise econômica e crítica cultural. Uma crise provocada não pelo custo da previdência social, mas pelo conflito Israel-mundo árabe, ou seja, pelas consequências das ambivalências das políticas coloniais no Oriente Médio. A crise do petróleo de 1973, que representará a primeira crise global do pós-guerra, quebrou o ciclo mais constante de crescimento no século 20, produzindo uma insegurança econômica profunda a ser aproveitada por novos discursos de reforma social.
Por sua vez, alguns podem achar estranho o papel da crítica cultural neste processo de esgotamento da democracia liberal, mas ele é real. Para tanto, foi necessário uma inversão peculiar, destas que o capitalismo mostrou-se hábil em operar. Maio de 68 produziu no Ocidente a ascensão da crítica à estrutura disciplinar do Estado e das instituições, a recusa da rigidez da sociedade do trabalho e a consciência do caráter extensivo do controle social próprio às figuras do Estado-providência. Ele esperava com isso permitir a emergência de um sujeito político com força de transformação global em direção a modelos capazes de recusar tanto o sistema burocrático soviético como a democracia liberal. Esses sujeitos emergiram, mas com menos força do que imaginavam. Junto a eles emergiram também tanto sujeitos claramente reativos, dispostos a lutar pela preservação da ordem e de suas tradições, quanto simulacros de revolta. Este é o ponto mais importante: analisar tais simulacros de revolta que, mesmo sem expor isto de forma clara, usavam a potência da sedição para empurrar o mundo para fora da democracia liberal. No entanto, não para além dela, mas para aquém.
Nesse sentido, lembremos como o primeiro tremor no pacto que sustentou a democracia liberal se deu com a leva neoliberal de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ao final dos anos 1970. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal, de Franklin Roosevelt, e em larga medida conservado por décadas foi desmontado por uma política de retração do Estado, de desregulação progressiva da economia e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais. Há de se lembrar como, cinco anos depois de assumir o governo do Reino Unido, Thatcher produzira simplesmente o declínio da produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra (11,9% em abril de 1984).
Os arautos do modelo econômico atual gostam de se ver como vencedores de um embate no qual teriam demonstrado ao mundo que o capitalismo neoliberal era a melhor forma, mesmo a única, de produzir riqueza, inovação e bem-estar. As experiências de esquerda teriam falhado por criarem apenas uma sociedade letárgica, presa na sustentação de um Estado ineficiente e pesado. Ou seja, tais experiências teriam sido ultrapassadas pela lei inexorável da eficiência econômica, lei que desconhece ideologias, que conheceria apenas “resultados”.
No entanto, os “resultados” mostram outra coisa. Eles mostram, por exemplo, como o nível de pobreza nos EUA cai progressivamente até meados da década de 1970, voltando a subir exatamente com a ascensão das políticas neoliberais, nunca tendo então caído de forma sustentada. Em 2015, ele atingia 13,5% da população (dados do US Census Bureau, Current Population Survey), mais do que em 2007. Os índices de desigualdade aumentaram exponencialmente nos últimos trinta anos.
Mas o fato fundamental só agora fica visível: a ascensão do neoliberalismo como política de Estado representou a destruição contínua da democracia liberal e seus pactos. Restringindo paulatinamente o horizonte de políticas públicas, impondo a versão de que, no que diz respeito à economia, “não há escolha” mesmo diante do caráter suicida do sistema financeiro internacional, explícito desde a crise dos subprimes, o neoliberalismo conseguiu esvaziar a política e suas instituições. Seu mundo é a reedição de um mundo pré-político, no qual as relações sociais se resumem à gestão da segurança e às garantias da perpetuação dos modos atuais de circulação de riqueza. Aos poucos, ficou evidente como a política mundial, depois de esvaziada da possibilidade de decidir modificações efetivas na esfera da economia, tornara-se uma mera pantomima, composta de personagens exímios em demonstrar sua impotência.
É neste horizonte de capitulação que a experiência brasileira se insere. Isto ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. O Brasil podia vender ter ultrapassado o primeiro impacto da crise operando políticas proto-keynesianas e de consolidação de capitalismo de Estado. Mas o caminho posterior será outro. Paulatinamente, seu destino foi o mesmo de todos os atores políticos mundiais forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de investimentos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável. Este processo que agora mostra sua face mais completa começa de maneira evidente no último governo Dilma.
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