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Privado: Voltar a agir

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por Vladimir Safatle

Em Cartas ao Humanismo, Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensá-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age quando pensa.

Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento ser, no fundo, um subterfúgio contra a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir.

Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa é porque ele é a única atividade que tem a força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir.

É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, simplesmente, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.

A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas.

No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois ela é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postas na mesa. Por isso, essa ação não é livre.

Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo.

Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação inefetiva pare, para que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar.

Pensar politicamente

Talvez valha a pena lembrar tais colocações de Heidegger em um momento histórico tão rico e imprevisível quanto este que atualmente vivemos. Nunca, desde os anos 1970, vimos tantas manifestações em tantas partes do mundo exigindo, no fundo, a reinvenção da política e de seu caráter emancipador.

Cairo, Túnis, Tel Aviv, Santiago, Madri, Atenas, Nova York, Londres, Roma. Essas são apenas algumas das cidades que foram sacudidas, em 2011, por manifestações que misturavam descontentamento com os rumos da economia mundial e consciência clara da impossibilidade de continuar a esvaziar o campo do político com limitações advindas da submissão dos governos aos interesses financeiros dos setores abastados da sociedade.

Quando Nova York também entrou em ebulição, então todos perceberam que a maré havia chegado ao núcleo central do capitalismo. Desde os anos 1970 não se viam mais de mil pessoas presas nos EUA simplesmente por quererem se manifestar politicamente contra o horizonte fim de linha que os discursos hegemônicos oferecem.

Não deixa de ser engraçado perceber como setores conservadores da mídia tentaram rapidamente desqualificar tais manifestações perguntando: afinal, o que eles querem, que ações eles propõem?

A resposta-padrão dos manifestantes era: “Queremos discutir”. Maneira inteligente de dizer: “Primeiro, queremos nos livrar dos bloqueios e limites que vocês colocaram em nossas cabeças”. “Queremos aprender a recolocar todas as possibilidades na mesa, ou seja, queremos reaprender a pensar e a encontrar a força transformadora do pensamento.”

Não poderia haver melhor resposta.

Pois, quando as ações aparecerem, as críticas serão: mas elas são impossíveis, não há dinheiro para isso, elas ignoram os fundamentos da economia atual, isso já deu errado antes, e coisas do gênero.

Essas são respostas-padrão quando se trata de lutar contra um novo que está prestes a nascer. Todo verdadeiro acontecimento histórico sempre foi inicialmente visto como impossível e improvável. No entanto, eles ocorrem, mudando o quadro do possível.

Todo verdadeiro acontecimento muda a configuração do possível. Isso porque tal configuração já estava modificada anteriormente pelo pensamento, que desempenhou sua verdadeira tarefa. Por isso, deixemos os jovens pensar. Eles sabem o que fazem.

O post Privado: Voltar a agir apareceu primeiro em Revista Cult.


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